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Ciência Espírita

A pesquisa qualitativa entre a fenomenologia e o empirismo-formal (IV)

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Não foi difícil mostrar que em meio aos chamados cientistas humanos e sociais, incluindo-se aí os que laboram no campo da administração, há uma multiplicidade de concepções de ciência. Selecionamos duas orientações, seguindo a proposta de Zilles, que designamos como “matrizes”, posto que não se trata de aplicar um método para uma disciplina (como a física) e outro para outra (como a medicina). Trata-se de entender que mesmo dentro de uma dada disciplina, especialmente aquelas cujo objeto se acha em clara interação com o homem e sua cultura, é-se passível de aplicar métodos de pesquisa qualitativa com bases fenomenológico-hermenêuticas ou com bases empírico-formais.

Geralmente, quando se usa o conceito “pesquisa qualitativa” está se dizendo “pesquisa não-quantitativa”, ou seja, que por algum motivo não construiu suas conclusões a partir da análise matemática das suas variáveis, que por sua vez não foram mensuradas a nível intervalar ou de razão. Sempre que se define assim, está se dizendo que se aceita a matriz empírico-formal como referência epistemológica (única) para a construção do conhecimento, que se está procedendo segundo as suas prescrições metodológicas mas que se reconhece uma limitação da pesquisa: seja o desconhecimento teórico do fenômeno específico (ausência de variáveis conhecidas) que demanda uma pesquisa exploratória, seja a desconfiança da capacidade de um modelo teórico aceito explicar corretamente um fenômeno, seja a impossibilidade de se mensurar um número significativo de variáveis a nível nominal, tudo isto justificaria o emprego da pesquisa qualitativa como uma préetapa ou uma etapa confirmatória do desenvolvimento teórico (uma teoria de regularidades).

Considerando-se a matriz hermenêutico-fenomenológica, entretanto, o termo pesquisa qualitativa assume uma dimensão totalmente diferente diante da construção teórica. Aqui se parte da crítica da metodologia empírico-formal como incapaz de construir teorias válidas, especialmente com relação a fenômenos que pressupõe a subjetividade ou ação subjetiva e intencional dos atores sociais. Neste cenário, não se buscam regularidades, mas sim a compreensão das opções dos agentes, daquilo que os levou singularmente a agir como agiram. Só é possível esta empreitada ouvindo os sujeitos a partir de sua lógica e exposição de razões. Quando muito, pode-se identificar crenças compartilhadas mais ou menos por grupos sociais, ou seja, cultura, sem pressupor que ela seja uma categoria estática no tempo e no espaço, mas uma categoria analítica em permanente transformação. Desta forma, a análise da linguagem (ou análise do discurso) parece ser mais produtiva que a análise matemática.

Na matriz empírico-formal, tem-se a análise a partir de objetos, mesmo que estes sejam produções ideológicas de uma pessoa ou grupo social. Isto leva seus críticos a atentarem para o fenômeno da reificação, que neste sentido seria a transformação em objeto daquilo que não o é.

Na matriz fenomenológico-hermenêutica tem-se a análise a partir da percepção do sentido das produções do sujeito, em busca de essências e de compreensão, através da intersubjetividade, o que leva seus críticos a atentarem para o fenômeno da subjetividade, no sentido de uma certa arbitrariedade do pesquisador na construção de suas teorias, assim como de uma dificuldade de verificação ou falsificação destas.

Entendemos que os dois métodos produzem conhecimento, mas cabe ao pesquisador senso crítico e clareza sobre seus objetos e objetivos, assim como a explicitação suficiente das matrizes epistemológicas que estão em uso a fim de não se perder em sua pesquisa e se fazer compreendido por seus pares. Concluímos também que a medida em que objetividade e subjetividade se entrecruzam no objeto de pesquisa, torna-se mais complexo fazer escolhas metodológicas.

Fontes Bibliográficas

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Destaques


"...a pesquisa qualitativa não é uma pesquisa para a qual não se teve fôlego para estudar um número suficiente de eventos que permitam generalização, nem está às voltas com um tipo de objeto que permite apenas uma mensuração não-métrica e muito menos é uma abordagem menor da ciência porque não consegue estabelecer com fundamento leis que estabelecem relações determinantes ou probabilísticas entre eventos. Trata-se de um tipo de pesquisa própria para a análise em profundidade de fenômenos onde se pressupõe, ou se busca entender melhor, a singularidade ou a subjetividade."

A idéia que o conhecimento científico é um tipo de conhecimento verdadeiro, e que a aplicação da metodologia científica conduz à obtenção da verdade, é um mito de difícil sustentação se o leitor se dispuser a analisar atentamente os pressupostos sobre os quais se constrói uma dada teoria epistemológica.

Grosso modo, temos então uma noção de ciência, que seria um método de produção de conhecimento verificável e acumulável, que estabelece nexos de causalidade entre fenômenos, a partir da observação sistemática e experimentação de fenômenos naturais com a finalidade de identificarem-se, por generalização, regularidades (leis) passíveis de descrição matemática.

Este problema não é diferente nas ciências administrativas, posto que têm por objeto as organizações de trabalho constituídas por seres humanos. Se por um lado é possível estabelecer regularidades que parecem ser universais às relações de troca (lei de oferta e procura nas ciências econômicas), da mesma forma temos as organizações com suas singularidades (os transplantes de modelos administrativos, por exemplo), gerando outputs diferentes daqueles que seriam esperados por um certo modelo administrativo.

Neste cenário, não se buscam regularidades, mas sim a compreensão das opções dos agentes, daquilo que os levou singularmente a agir como agiram. Só é possível esta empreitada ouvindo os sujeitos a partir de sua lógica e exposição de razões. Quando muito, pode-se identificar crenças compartilhadas mais ou menos por grupos sociais, ou seja, cultura, sem pressupor que ela seja uma categoria estática no tempo e no espaço, mas uma categoria analítica em permanente transformação.

A Pesquisa Qualitativa Entre a Fenomenologia e o Empirismo-Formal

Jáder dos Reis Sampaio

Professor assistente da Universidade Federal de Minas Gerais. Psicólogo formado pela UFMG, Especialista em Psicologia do Trabalho pela Universidade de Brasília - UnB, Mestre em Administração pela UFMG e Doutorando em Administração pela Universidade de São Paulo - USP.

Artigo publicado originalmente na Revista de Administração da Universidade de São Paulo

[SAMPAIO, Jáder dos Reis. A pesquisa qualitativa entre a fenomenologia e o empirismo formal. 
Revista de Administração. São Paulo, v. 36, n. 2, p.16-24, abr/jun 2001.]
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