Boletim GEAE

Grupo de Estudos Avançados Espíritas

http://www.geae.inf.br

Fundado em 15 de outubro de 1992
Boletim Quinzenal de Distribuição Eletrônica

"Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão, face a face, em todas as épocas da humanidade", Allan Kardec

Ano 12 - Número 472 - 2004            16 de março de 2004


Artigos

Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência, Ademir L. Xavier Jr, Brasil

História & Pesquisa

Os Mistérios - Um Encontro de Época Romanceado, Milton B. Piedade, Brasil

São Paulo 450 Anos - O Espiritismo e os Bairros da Cidade, Carlos Iglesia, Brasil

Questões e Comentários

Sobre a União da Alma ao Corpo, José Maria, Brasil

Painel

O Exemplo de Paulo Daltro, Fátima Salvo, Brasil



Artigos

 

Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência, Ademir L. Xavier Jr., Brasil


Resumo

Discute-se aqui brevemente a interação entre o Espiritismo e as ciências. Essa relação pode ser entendida de diversos aspectos, uma necessariamente que considera o aspecto científico do Espiritismo. É importante porém frisar que não pode haver compreensão correta dessa interação, se não se tem compreensão correta do sentido em que se fala de aspecto científico do Espiritismo. Essa discussão apresenta implicações importantes para os espíritas que acreditam na necessidade de atualização da Doutrina Espírita.

 1.Introdução

Todo adepto com razoável entendimento dos princípios da Doutrina Espírita sabe que ela é um conjunto de princípios que se apresentam como afirmações sobre o mundo. Não é menos certo que muitos desses princípios, ainda que se apliquem ao objetivo maior do Espiritismo que é o estudo do elemento espiritual, contém afirmações singulares e gerais sobre o mundo material. Isso necessariamente nos leva à fronteira entre o Espiritismo e as ciências bem estabelecidas que também afirmam coisas sobre o mundo. Para que haja evolução na forma de aquisição de conhecimento – um dos objetivos das ciências e também do Espiritismo, no caso, conhecimento sobre o mundo espiritual – faz-se necessário conhecer exatamente como se dá essa relação.

A ciência, tal como a conhecemos hoje, é produto da evolução lenta com que nossa sociedade passou nos últimos séculos. Não existe um consenso geral (na forma de uma formula ou padrão estabelecido) sobre qual seria a definição exata de ciência. Podemos, porém, descrevê-la de acordo com alguns de seus atributos bem conhecidos. De todos eles, um que parece conveniente para caracterizar as chamadas ciências bem estabelecidas (física, biologia, química e outros) é a noção de paradigma
1. Por paradigma entende-se um conjunto de princípios que versam sobre determinado objeto, e que se encontram naturalmente relacionados a um grupo ou conjunto de fenômenos naturais. Fazem parte do corpo que forma o paradigma também leis complementares a completar o conhecimento, permitindo a aplicação das leis do corpo principal aos fenômenos observados. Os paradigmas são os campos de trabalho tradicional na pesquisa normal das grandes áreas do conhecimento científico. Assim, Ciência não é a mera coleção de fatos e hipóteses mas algo muito mais complexo, em constante mutação através das gerações possuindo seus próprios sistemas de proteção a fim de evitar que seu corpo principal de doutrina seja corrompido. Não se pode mudar a orientação de determinado programa de pesquisa de uma noite para outra, ainda que se tivesse uma boa razão para isso. As mudanças nos programas de pesquisa que caracterizam o paradigma – conhecidas como revoluções científicas – necessitam de um tempo de maturação e, muitas vezes, uma mudança no posicionamento dos cientistas, na maneira como eles vêem o mundo. As revoluções científicas são acontecimentos de curta duração seguidos muitas vezes de estágios de desenvolvimento mais ou menos estáveis.

Semelhantes considerações, como pode se compreender, não devem ser deixadas de lado na análise do assunto que serve de título a este texto. Da mesma forma, de uma análise imparcial da própria Doutrina Espírita deve nascer um modelo de idéias que consiga descrever corretamente o que se entenda por “aspecto científico” do Espiritismo. De posse desses dois ingredientes (compreensão correta do aspecto científico do Espiritismo e do significado da Ciência) podemos então considerar seriamente um debate sobre a relação entre esses dois ramos do conhecimento humano. Apresentamos aqui brevemente alguns subsídios para se iniciar esse debate.

2. Noções incorretas de ciência espírita e ciência normal. Discutindo um modelo mais apropriado de ciência.


Um número razoável de espíritas e simpatizantes procuram abordar o aspecto científico do Espiritismo de forma a moldá-lo segundo a visão parcial do conhecimento considerado genuinamente científico. Essa visão parcial vê a ciência como uma atividade extremamente rigorosa em seus métodos de análise, e acredita que os sucessos obtidos com o desenvolvimento científico – que permitiram compreender os fenômenos e desenvolver novas aplicações tecnológicas – são produto direto desse rigor metodológico. Nada poderia estar mais longe da realidade. O sucesso da ciência atual, que se materializa na forma de produtos tecnológicos e sofisticados métodos numéricos de reprodução da realidade em seus mínimos detalhes, não decorre apenas de um rigor metodológico qualquer que seja ele, mas principalmente das teorias que nascem em sua forma primitiva na cabeça dos cientistas. Semelhante compreensão parcial da realidade é comum para muitos espíritas que acreditam que os fenômenos espíritas devam satisfazer necessariamente a critérios de adequação empírica conforme os moldes das ciências normais. Para esses, a “ciência espírita” tem a haver unicamente com a parte fenomenológica (na forma da mediunidade em seus múltiplos aspectos) com exclusão de qualquer consideração de princípios. O Espiritismo é visto como um amontoado de fenômenos a partir dos quais se pode inferir um conjunto de afirmações mais gerais e deduzir conseqüências. Seguindo esse caminho, logicamente os inimigos do Espiritismo se comprazem em negar os fenômenos ou inventar explicações alternativas que parecem atingir os supostamente deduzidos princípios espíritas. Coincidentemente, essa visão também é popularmente atribuída à ciência. De uma maneira simplificada podemos esquematizar o entendimento popular de ciência – que dá origem ao chamado “método científico” – de acordo com a Fig. 1.



Nessa figura, um observador bem intencionado (quer dizer, isento de pré-julgamentos ou explicações próprias consideradas tendenciosas) observa os fenômenos da natureza. Essa observação deve ser igualmente isenta e completa suficiente para não permitir perda de informação a respeito dos fenômenos. Deve ser realizada de forma a cobrir o maior número de “condições” possíveis, o que leva à necessidade de se repetir testes experimentais um grande número de vezes. A partir dos fenômenos ele elabora hipóteses consideradas razoáveis que, por um processo mal explicado, degenera (ou se sintetiza) em “leis gerais”. Esse processo de criação de leis gerais é denominado indução. A partir das leis induzidas outros fenômenos semelhantes (ou os mesmos) podem ser explicados por um processo denominado dedução. Um ponto importante a ser considerado diz respeito às conseqüências para o desenvolvimento de uma ciência se o modelo mostrado na Fig. 1 for considerado ideal. Compreensivelmente pode-se com ele destruir qualquer tipo de explicação negando-se simplesmente os fenômenos. Desde que esses não existam, não há sentido em se acreditar nos princípios deles supostamente induzidos. Isso acontece com os que negam inúmeras vezes com os fatos psíquicos, e com ele a idéia de comunicação entre vivos e mortos e a sobrevivência dos seres após a morte.

Como dissemos, o sucesso da ciência contemporânea bem estabelecida advém de sua estrutura intrínseca onde os fenômenos não têm papel central. O papel principal no estabelecimento da ciência é atribuído aos paradigmas ou teorias. Muitas vezes pode acontecer que uma determinada teoria seja melhor que uma outra, ao mesmo tempo que ninguém acredite nela. Teorias como realizações mentais ou afirmações sobre o mundo são criadas livremente por um grupo restrito de cientistas (às vezes apenas um indivíduo), e portanto, fazem parte de sua bagagem cultural como crenças. É pela adequação dessas teorias aos fenômenos que elas se tornam aceitas a um grupo maior. O problema é que a definição de experimentos ou a previsão de determinadas ocorrências fenomenológicas depende da teoria. Poderíamos dar inúmeros exemplos dessa situação. Em física – que é uma das ciências comumente consideradas com grande prestígio – é bastante nítido a ocorrência de “previsões experimentais” como resultado direto de teorias sofisticadas onde nada remotamente parecido com o fenômeno em questão tenha entrado como ingrediente. Algumas outras vezes, são feitas previsões de objetos ou circunstâncias nunca observados anteriormente. Essa inversão de papéis, no que tange à importância para o desenvolvimento da Ciência entre teoria e experimento, é a principal causa de confusão tanto no que se refere à compreensão correta da Ciência em si como do aspecto científico do Espiritismo. Conseqüentemente deve-se fazer um esforço para compreender essa inversão a fim de que seja útil na discussão da relação entre o Espiritismo e a Ciência.


A Ciência só tem início com a teoria. Essas podem ter qualquer origem – sejam motivadas por algum acontecimento experimental ou por algum sonho de pesquisador (como no famoso caso do sonho de Kekulé ao conceber o formato dos anéis de carbono no benzeno). A origem do conhecimento científico não é importante para a Ciência. Isto que dizer que uma determinada teoria não tem valor maior ou menor conforme sua origem, embora muitos cientistas sejam levados a crer ou não nelas de acordo com a força de autoridade de seus proponentes. A partir da proposição da teoria, segue a tentativa de explicação dos fenômenos com ou sem a ajuda de leis complementares que não fazem parte do núcleo principal da teoria. Como um exemplo rápido podemos considerar o processo de previsão de tempo na meteorologia. As leis que governam os fenômenos meteorológicos são leis físicas, assentadas em princípios térmicos e termodinâmicos. Para prever a situação de tempo com todos os detalhes, pode-se construir modelos numéricos sofisticados onde essas leis estejam embutidas juntamente com “condições de fronteira” específicas tais como a separação entre continentes e mares, o estado inicial de temperatura de uma determinada região, a posição do sol (sua altura em relação ao solo) etc. Essas são as leis complementares.


Dissemos que a maior parte das pessoas considera a noção popular a própria essência do “método científico”. Isso é particularmente forte nas denominadas “ciências parapsicológicas”, ou o conjunto de disciplinas que tem como objetivo explicar de maneira supostamente científica os fenômenos mediúnicos no Espiritismo. Essas disciplinas apresentam escassa discussão teórica, dando enorme ênfase a descrição puramente fenomenológica dos fatos psíquicos. Quando são fornecidas explicações, essas procuram ligar-se fortemente aos fenômenos. Dessa forma, é comum a tentativa de explicação simplificada para cada fenômeno. Assim a telepatia é invocada como “hipótese” para explicar as comunicações dos Espíritos, negando-se a existência desses últimos. Ora a “telepatia” é definida simplesmente como a capacidade de transferência de informação entre duas “mentes” (no caso, pessoas). Essa capacidade pode ser constatada de forma experimental. É um fato e não um princípio sobre o qual se possa estabelecer uma explicação. Nas “ciências psi” busca-se dar explicações aos fatos utilizando-se os próprios fatos. Nesse processo explicações são muitas vezes tornadas verossímeis pela sua designação por nomes empolados, difíceis de se pronunciar e com nenhum apelo intuitivo. É muito conhecida a frase, dada a guiza de explicação, de que os fenômenos psíquicos se fundamentam nas capacidades desconhecidas do cérebro. Diz-se que os seres humanos normais utilizam apenas “10% da capacidade cerebral”. Ora, qual a base para semelhantes afirmações? Como se mede essa capacidade cerebral? Nas “ciências parapsicológias” ocorrem falhas graves de compreensão dos verdadeiros atributos de uma disciplina para ser denominada ciência.


Já discutimos muito brevemente que uma verdadeira ciência se constrói utilizando modelos, teorias ou paradigmas. A Fig. 2 ilustra essa “concepção de ciência” mais próxima da realidade. Há num centro irradiador de explicações (a teoria), e integrado naturalmente aos fenômenos naturais a respeito dos quais a teoria ou paradigma versa. Leis complementares reforçam a estrutura do paradigma e integram os princípios, que fazem parte dele, aos fenômenos. Juntamente com essas leis, o paradigma fornece explicações para os fenômenos, inclusive alguns desconhecidos. É possível assim que no corpo teórico que constitui o paradigma, já exista o gérmen para explicação de muitos fenômenos nunca observados. Esse modelo encontra respaldo na história do desenvolvimento de muitas ciências bem sucedidas.



Também o modelo da Fig. 2 não faz nenhuma referência à necessidade externa de “instrumentos especiais de medida” e nem a métodos supostamente rigorosos de medida experimental, pois a existência desses aparelhos (a explicação de seu funcionamento) só se justifica pelo paradigma que para eles fornece explicação. É o caso, por exemplo, da utilização de equipamentos ópticos para estudar o movimento dos planetas e outros corpos celestes. A explicação do funcionamento dos equipamentos é fornecida pela óptica, uma área da física, não necessariamente ligada à astronomia ou astrofísica. É possível englobar os princípios da óptica e da mecânica dos corpos em um corpo de teoria comum (no caso a “física”), mas prefere-se mantê-los separados por referirem a domínios fenomenológicos diferentes. Ressaltamos porém que o grau de complexidade desses aparelhos não tem correlação alguma com o rigor com que eles realizam suas medidas. Muito ao contrário, nesse modelo, estimula-se a realização de testes experimentais simples, de observação direta, onde haja pouca influência de fatores de erro a comprometer a realização das medidas. No modelo da Fig. 2 a teoria tem papel fundamental e não o fenômeno. Desde de que se creia e desenvolva a teoria, explicações para os fenômenos irão aparecer. Visto de outra forma, os fenômenos são justificados (explicados) pelo modelo a ponto de só poderem ser percebidos por aqueles que disponham de conhecimento do paradigma. Muitas vezes é possível notar que um mesmo paradigma fornece explicações para inúmeros fenômenos – muitos deles tratados inicialmente como sem correlação alguma com a teoria. Há inúmeros exemplos como esses nas chamadas “ciências normais”, as ciências que se desenvolveram historicamente segundo o modelo “paradigmático” de ciência. Percebe-se que a negação dos fenômenos não traz conseqüência alguma para a ciência vista nesse sentido pois o paradigma tem papel fundamental. Nesse caso, negar um fato soa profundamente suspeito de falha de compreensão da teoria ou paradigma. Não há também nenhuma preocupação com o grau de comprometimento do cientista com sua crença: pelo contrário admite-se abertamente que ciência é uma atividade onde a criatividade e crença particular do cientista tem uma importância muito grande e benéfica para a ciência. Há, porém, limites para a livre criação, o corpo teórico deve ser interrelacionado e coerente, isto é, seus princípios não devem conflitar entre si. Além disso, a excelência de um determinado paradigma é medido em termos de sua capacidade de explicar os fenômenos a ele ligado e também prever outros. Assim, não basta apenas criar muitas explicações, essas originam-se de princípios mais primitivos e harmônicos, mais ou menos imutáveis
2.


Entendemos que a parte científica do Espiritismo deve ser entendida conforme o modelo da Fig. 2. Nele os fenômenos são parte secundária e não fundamental da doutrina. A Doutrina Espírita contém o núcleo principal teórico da ciência espírita. Da utilização de leis complementares chega-se a explicação dos fatos. No caso dos fenômenos mediúnicos, a existência do perispírito como agente intermediário entre o Espírito e o corpo material é fundamental para compreender a imensa maioria dos fenômenos mediúnicos também denominados psíquicos. Entretanto, a Doutrina Espírita vista como paradigma com conseqüências mais profundas, abarca um conjunto muito mais extenso de fenômenos: fenômenos sociais (principalmente comportamentais), biológicos, históricos, patológicos etc. Assim, embora não seja seu objetivo principal, o Espiritismo contribui a muitas áreas do conhecimento, em particular àquela que busca compreender a origem, essência e futuro do homem entendido como uma criatura sem limite no tempo. O Espírito é assim o objeto de estudo da ciência espírita e o paradigma espírita é formado por um conjunto harmônico e mais ou menos fixos. Princípios como a existência de Deus, do espírito como elemento fundamental (além da matéria), da evolução do espírito e da comunicabilidade entre os Espíritos e os homens (reinterpretados como Espíritos encarnados) são alguns dos princípios fundamentais. Esses princípios juntamente com outros (tal como a busca da felicidade por parte das criaturas) explicam e prevêem os fenômenos. Consideremos o caso das doenças denominadas “psiquiátricas”. Faz parte desse enorme grupo de patologias mentais, (que afetam o comportamento do indivíduo) um grupo não menos importantes de doenças provocadas por influências espirituais – as obsessões em seus mais diferentes graus. Compreender o surgimento dessas doenças, que fornece idealmente a base para um tratamento eficaz, é tarefa simples para o Espiritismo (desde que corretamente aplicado), mas muito difícil para as correntes que negam a existência do Espírito, e que buscam uma explicação puramente material. Já citamos aqui a telepatia. Dentro do paradigma espírita, a comunicação entre Espíritos é um fato bem estabelecido. Em particular, a comunicação entre Espíritos encarnados é uma forma particular dessa capacidade de comunicação. Temos assim uma explicação muito natural (dizemos “intuitiva”) da telepatia. Essa explicação funda-se num princípio muito mais geral que explica simples e igualmente bem a enorme variedade de comunicações ou fatos psíquicos.

3. Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

Depois dessa discussão inicial, fica claro que não se pode falar em uma receita infalível, tal como o sonho de um método rigoroso, para se fazer ciência. Ela é o resultado de uma atividade altamente complexa e integrada no tempo através de grupos de indivíduos formando uma cultura. O Espiritismo, diante das considerações feitas, classifica-se plenamente como uma doutrina científica. Não segue daí que deva adotar o modelo popular de ciência por algumas das falhas que discutimos anteriormente. Essa discussão é importante para os que consideram a Doutrina Espírita, desenvolvida nos livros básicos de Allan Kardec, como conhecimento ultrapassado. Não existe nada mais longe da realidade. Como dissemos, o corpo principal da teoria é protegido com certa rigidez. Modificações no paradigma só acontecem – são conclusivamente admitidos como necessários – se houverem razões muito fortes para isso. Tal não é o caso do Espiritismo proposto pelos Espíritos que auxiliaram Kardec. Da mesma forma que negar os fenômenos é sinal de falha na compreensão do paradigma, com muito mais razão, as tentativas de “reforma” do núcleo principal do Espiritismo (invenção de novos princípios em desacordo com aqueles) é sinal forte de falha na compreensão desses princípios. Clamores recentes nesse sentidos são assentados em considerações bastante pueris, e deixam entrever uma dificuldade de compreensão do verdadeiro caráter do Espiritismo entendido como ciência.


A tarefa agora é começar a entender como se estabelece a relação entre o Espiritismo e as ciências. Certamente não será objetivo do Espiritismo competir com esses ramos de atividade humana. Por isso, não é tarefa do Espiritismo fornecer explicações alternativas ou desenvolver o núcleo principal das ciências com as quais o Espiritismo faz fronteira. Não se deve esquecer que o Espiritismo como movimento é uma realização humana. O cientista que é espírita – se trabalha profissionalmente com alguma dessas áreas correlatas – tem seus próprios meios e procedimentos, advindos do estudo adquirido de sua atividade. Como faz parte do processo de desenvolvimento da ciência normal, ele pode (e deve) utilizar-se dos meios a sua volta (inclusive sua própria cultura) para fazer desenvolver sua ciência que tem suas regras próprias. Como dissemos, a ciência não faz caso da origem do conhecimento, o importante é que esse se organize como um paradigma bem estruturado, coerente e naturalmente integrado aos fenômenos. Fazemos abaixo alguns breves comentários das regiões de fronteira entre a Doutrina Espíritia e as ciências enfatizando alguns pontos que nos parecem interessantes:


Espiritismo X Astronomia: é bem conhecida as descrições da origem do sistema solar (nebulosa primordial) existente no livro “Gênese” [2] de Allan Kardec. O capítulo VI de “Gênese” também fala de inúmeras galáxias (denominadas “nebulosas” – entendidas como agrupamentos de bilhões de estrelas como a “Via-Láctea”) numa época em que não se havia certeza desse fato. Há relatos de comunicações de Espíritos anunciando a existência de satélites desconhecidos em outros planetas. Além disso, o Espiritismo parece ter se antecipado às discussões que deram origem à exobiologia, proposta para estudar as formas de vida extraterrestres. É interessante observar que, uma vez classificada como um planeta qualquer, a Terra passou a ser vista como um dos muitos planetas a ter vida inteligente no Universo (algo muito difícil de se acreditar no século 19). O Espiritismo prevê abertamente, pelo princípio da “pluralidade dos mundos habitados”, a existência de vida inteligente fora da Terra (ainda a ser verificada pelos métodos normais – contato físico). Antes disso, porém, previu a existência de inúmeros planetas orbitando as estrelas, um fato que se tornou tema de pesquisa contemporâneo, graças ao desenvolvimento de novos métodos de observação muito mais precisos. Muitos planetas foram encontrados a partir de 1990 em torno de estrelas próximas.

Espiritismo X Física
: aqui deparamo-nos com algumas afirmações feitas em “O Livro dos Espíritos” que parecem ter antevisto a modificação radical por que passaria a física a partir do século 20. Os Espíritos falaram em uma forma que “que não sois capaz de apreciar” [4] a respeito da estrutura dos átomos (uma alusão às “nuvens de probabilidade” dos elétrons?) num contexto bastante diferente para a física da época. Considerações sobre a origem do Universo são feitas no começo de “O Livro dos Espíritos”, levando o Espiritismo para a fronteira com a cosmologia. É preciso, porém, ter cautela em se tratar a questão inversa: a da influência da física no Espiritismo. Muitos falam abertamente nas diversas “energias” que constituem o mundo espiritual, esquecendo-se que “energia” é um conceito muito bem definido em física e que não admite reinterpretações dessa forma [5]. Outros levantam a possibilidade de entender o próprio mundo espiritual como um “contínuo quadridimensional” do mundo físico. Para se utilizar conceitos e sugestões advindos do Espiritismo na física, faz-se necessário grande competência em física uma vez que os núcleos das teorias (tanto do lado espírita como material) possui certa resistência a mudanças, além de estar fundamentado em teorias profundamente matemáticas. Por isso mesmo, tentativas de modificação de conceitos por sugestão de ambos os lados (de um lado para outro) são muito duvidosas no que diz respeito a qualquer avanço significativo no conhecimento. É importante também considerar as questões de diferença de linguagem (significado de termos e conceitos dentro de cada teoria particular) quando essa linguagem tenta conectar um fenômeno supostamente descritível tanto pela física como pelo Espiritismo. Minha impressão particular é de que o grau de especificidade atingido pela física (especialização na forma de pulverização de campos de compentência) torna pouco viável qualquer tentativa “fácil” de interação.


Espiritismo X Biologia (medicina)
: aqui a fronteira torna-se um pouco mais nítida. Em “O Livro dos Espíritos”[6], existem muitas questões a respeito da origem dos seres vivos. É também na “Gênese” que existe um famoso capítulo sobre a gênese orgânica. Naturalmente, esse capítulo faz eco às concepções da época, ainda às voltas com a “teoria da geração espontânea”, então a teoria mais aceita. É no Capítulo XI da II Parte de “O livro dos Espíritos” [3] que vamos encontrar questões cujas perguntas reafirmam a natureza espiritual de todos os seres vivos e sua submissão à lei de progresso. Naturalmente, os mecanismos da evolução das espécies não estão afirmados nesses livros, mas o princípio de evolução espiritual ajusta-se perfeitamente bem aos princípios da seleção natural, representando um mecanismo de modificação que atua na parte material levando o Espírito a se desenvolver. É importante considerar que as discussões sobre a gênese orgânica são complementares para a compreensão da Doutrina e seu desenvolvimento. Por isso esses pontos, assim como muitos outros, sofrem e sofrerão modificação, sem que haja impacto ao corpo principal de doutrina.


Tal não é o caso, porém, com as inúmeras patologias da alma [7] que citamos acima. Nos quadros obsessivos, a ação do Espírito obsessor pode levar ao colapso orgânico do obsidiado. A origem da doença, em sua íntima essência, encontra-se assim descrita através desse quadro de “simbiose espiritual”. É difícil entender como outra teoria – que desconheça a ação dos Espíritos – possa ter um sucesso maior no desenvolvimento de uma terapia apropriada. Aqui vê-se claramente a enorme importância dos princípios espíritas no desenvolvimento de certos ramos da medicina pois não se trata apenas de construção ou progressão da ciênica mas do desenvolviemento de terapias apropriadas a inúmeros transtornos mentais.


Espiritismo X História
: as contribuições que o Espiritismo pode dar à História são bastante evidentes. Um aspecto bastante inovador surge aqui, que é o de considerar os relatos históricos fornecidos pelos Espíritos, quando por meio de médiums conhecidos. São notórios os casos de médiums que colaboram com investigações policiais na elucidação de crimes. No Brasil a psicografia já ajudou a elucidar vários assassinatos. Com médiums equilibrados, os Espíritos podem fazer revelações úteis ao progresso moral da sociedade e, muitas vezes, essas revelações trazem noticias de relevante valor histórioco (como no caso dos inúmeros romances históricos de Emmanuel por meio de Francisco C. Xavier).


Espiritismo X Psicologia
: o Espiritismo tem muito a contribuir com as disciplinas que tem como objetivo de estudo o homem em sua essência. Esse é o caso da Psicologia. Podemos falar em uma psicologia espírita que nasce por “inspiração” dos postulados da doutrina (principalmente de suas conseqüências morais) na maneira de viver, de se comportar e de interagir dos seres humanos. O conhecimento da lei de evolução e reencarnação é crucial para se entender as tendências inatas dos seres humanos que determinam o comportamento para além das limitadas considerações genéticas. Esse certamente é um campo com grande futuro, onde apenas vislumbramos um começo.


Espiritismo X Sociologia
: o comportamento social e evolução das sociedades é função de seu desenvolvimento cultural, de seu passado e da maneira de ser de seus indivíduos. Como no caso da História e da Psicologia, o Espiritismo tem muito a contribuir para o estudo e desenvolvimento da história social do homem uma vez que o compreende como Espírito em perene evolução. Há uma interação natural, desde a mais remota antigüidade entre o mundo material e o plano espiritual. Esse fluxo é responsável pelo aparecimento e desenvolvimento de muitas religiões e culturas consideradas “inspiradas”. Dos princípios e informações fornecidos pelos Espíritos é possível complementar a história sociológica de várias sociedades.


Todos esses campos (assim como outros não listados acima tais como as artes) aguardam um futuro quando o espírita cientista seja capaz de utilizar judiciosamente o conhecimento espírita, de acordo com as regras estabelecidas por sua ciência particular. O objetivo não é fazer o Espiritismo brilhar para a sociedade como um concorrente das ciências, mas como fonte de inspiração e origem para proposição de novos mecanismos de explicação dos fenômenos e ocorrências característicos de cada uma delas.

Considerações diferentes dizem respeito à atuação do cientista espírita. Por esse termo referimo-nos àqueles que pretendem desenvolver a ciência espírita a partir de seus princípios ou com a modificação desses, utilizando idéias advindas de outras ciências. É uma conseqüência natural que se pretenda estabelecer um ambiente acadêmico espírita – uma vez verificado o caráter científico do Espiritismo. Mas cautela é necessária para não exagerar demais nas comparações. Se o Espiritismo é de fato uma ciência não segue daí que no nosso momento histórico ele deva se preocupar com o estabelecimento de um ambiente acadêmico como uma cópia dos ambientes acadêmicos de outras ciências. Todos sabemos dos efeitos que a excessiva profissionalização pode trazer em detrimento do fluxo de idéias, gerando estagnação. Imaginamos que no presente momento de desenvolvimento e expansão da Doutrina Espírita não temos um ambiente completamente apropriado a efetiva realização dos objetivos de um ambiente puramente acadêmico. Outras considerações sobre essa questão serão feitas em texto futuro.

4.Alguns comentários finais.

Tentamos limitadamente neste texto discutir algumas idéias sobre o conceito moderno (paradigma) de ciência “normal” – bem amadurecida – e o que seria compreensível como uma salutar relação dessa ciência com o Espiritismo. A aplicação padrão dos procedimentos de construção da ciência leva a plena formação e progresso do conhecimento científico. A tentativa forçada de se estabelecer relações – não sugeridas pelo desenvolvimento científico mas imaginadas como situações idealizadas – não só conduz a perda de tempo como ao descrédito. Da parte do Espiritismo, tentativas forçadas de querer transcrevê-lo ou moldá-lo segundo normas ou procedimentos de outras ciências pode conduzir a ilusão de falsificação da doutrina uma vez que o conhecimento científico e sua interpretação é função de um contexto altamente específico e mutante mas desconexo em relação a ela. Por outro lado, querer misturar conceitos de outras ciências com princípios espíritas não é científico pois dentro da noção de paradigma cada um deles deve ser entendido dentro de seu contexto de pesquisa (ambientação acadêmica) não se permitindo enxertias ou fusões ainda que muito bem intencionadas.

Aprendamos a ver cada ciência – o Espiritismo entre elas – como linguagens a respeito do mundo. No procedimento de comunicação normal, plena compreensão só é conseguida quando o emissor e o receptor dispõem de bagagem linguística comum. Todo e qualquer procedimento de tradução leva necessariamente a perda de significado pela impossibilidade de se transcrever plenamente determinados conceitos e idéias típicos de um determinado referencial linguístico. O Espiritismo é uma linguagem a respeito do mundo espiritual, criada e desenvolvida para transmitir conceitos sobre esse mundo. As ciências materiais são linguagens distintas que tratam de outro cenário, embora o “palco” apresente áreas comuns ou adjacentes que no momento não dispomos de linguagem apropriada para descrever.


Entretanto, a própria evolução das ciências levará a criação de uma linguagem comum em futuro incerto (talvez distante para o nosso calendário). Esperamos que quando esse futuro acontecer, o Espiritismo tenha cumprido em sua totalidade seu papel fundamental que é o de promover a efetiva reforma moral em todos os Espíritos que dele tiverem se aproximado buscando consolo e refazimento moral.

Agradecimento


Agradeço ao Alexandre F. da Fonseca pela leitura e comentários a esse texto.

Referências

[1] A. F. Chalmers, “O que é ciência afinal ?”, (1993), Ed. Brasiliense.
[2] A. Kardec, “A Gênese”, Uranografia Geral, o espaço e o tempo (Cap. VI). Ed. Federação Espírita Brasileira, 34a edição (1991).
[3] A. Kardec, “O Livro dos Espíritos”, Trad. Guillon Ribeiro, Ed. Federação Espírita Brasileira, 71a edição (1991).
[4] Referência [3] , questão 34.
[5] A. P. Chagas, Polissemias no Espiritismo, Revista Internacional de Espiritismo, pp. 247-49, Setembro de 1996.
[6] Referência [3], Cap. III.
[7] I. Ferreira, “Novos rumos à medicina”, Vol. I, Tratamento dos processos obsessivos no Sanatório Espírita de Uberaba, Edições Federação Espírita do Estado de São Pa
ulo (1990).

1 Para uma introdução básica ao assunto ver [1] .

2 Essa imutabilidade não deve ser entendida com a rigidez dos dogmas. Há um conjunto de regras muitas vezes não explícitas que protegem o conjunto de princípios de modificações mal justificadas.

Retorno ao Índice

História & Pesquisa

(Seção em parceria com a "Liga de Historiadores e Pesquisadores Espíritas" -  Comitê Editorial da LIHPE)

Os Mistérios - Um Encontro de Época Romanceado, Milton B. Piedade, Brasil

Entrei apressado para fugir da chuva e não tive oportunidade de ver a fisionomia das pessoas. As silhuetas eram irreconhecíveis. Um movimento incomum desviou minha atenção do filme. O barulho do projetor 35mm quase não me permitia ouvir. Aproximei a cabeça e direcionei o ouvido.

Fixei minha atenção na voz de tom mais agudo, daquele senhor de estatura baixa:

- ...mas todos foram facilmente desmascarados por Richet, Geley, Schrenck-Notzing, Harry Price.

Seu interlocutor não se exaltou:

- Isso só prova que ao lado do fenômeno falso, há o verdadeiro. Ao lado das fraudes conscientes, há as fraudes inconscientes. Sua generalização é tola e imprudente. Causa dó o teorista que pretende, ainda hoje, desconhecer tais fenômenos.

Ainda com os respingos da chuva e a respiração ofegante, eu não havia me desligado completamente de minhas angustias. Estava sendo uma década apreensiva. Depois da morte de Stalin na URSS e o cessar fogo na Coréia veio a revolução Cubana. A guerra fria foi ganhando novos contornos e eu me voltara mais para as questões da política internacional e de minha própria existência. Aquele encontro casual no cinema parecia ter um sabor especial. Ouvia nomes pouco familiares mas que me levavam a memórias distantes. Uma agradável sensação de prazer intelectual foi tomando conta de meu ser.

- Você se esquece do livro As Fraudes do Médium Laszlo, certamente.

Ponderou o senhor baixo.

Apesar do tom aparentemente mais ríspido, o senhor calvo se mostrava sereno e perguntou:

- Estou esperando você dizer da paixão de William Crookes pelo fantasma de Katie King, ou será que o prof. Leonídio Ribeiro já lhe convenceu que a avassaladora paixão foi por Florence Cook?

Nesse momento reconheci o outro interlocutor. Tratava-se de profissional de fama. Médico que havia se celebrizado nas letras, por várias obras, umas de cunho científico, outras de cunho filosófico. Pessoa que deixava atrás de si um rastro luminoso como de certos meteoros quando sulcam o espaço. Aquele senhor de estatura baixa e voz aguda era sem dúvida o Dr. Silva Mello. Havia ouvido falar de seu último livro "Mistérios e Realidades deste e de outro Mundo". Eram seiscentas páginas onde ele tentava provar que algo não existia. Não me recordava ao certo.

O senhor de voz aguda parecia pensar, quando seu interlocutor continuou:

- Eu não conseguiria enumerar todos seus equívocos. Você é um contador de anedotas.


Pareceu-me duro demais, porém necessário.

- Então devo eu acreditar que um elefante pode voar?

Questionou o senhor de tom agudo.

- Voar, no sentido de criar asas, concordamos na impossibilidade. Mas o acumulo de forças fluídicas em determinadas condições que levem o elefante ao ar sim, isto é possível. E o fenômeno da levitação explica o fato.

- E quem diz isso é o Mirabelli! 

Afirmou categoricamente com seu tom agudo característico.

- É Lombroso, em companhia de Bianchi, Tamburini, Vizioli, Ascensi...

Depois de rápido silêncio, que me pareceu pausa para reflexão, continuou:

- Bom... Ao menos desta vez você não citou Crookes.


- Então, não lhe dei oportunidade de se resignar a encarar Crookes como um imbecil, o que seria mais imbecil ainda.

Ficara evidente que tratavam-se de dois homens de letra. Este que por último se pronunciara causava excelente impressão. Demonstrava conhecimento profundo daquilo que falava. Se expressava com autoridade e levava sobre seu adversário a vantagem do estilo, de uma ironia, talvez a pior para o protagonista, porque é aquela que faz rir, e o riso do ouvinte, atuando como um pé de vento, põe embaixo, com uma só rajada, o volumoso castelo de ilusões que o outro havia armado com tanto jeito.

- Tenho também meus pontos convergentes.

Afirmou o senhor de estatura baixa.


- ???

- Richet não aceitava a levitação, eu também não aceito. Logo, não mereço a má vontade dos espíritas.


Me lembro de ter acompanhado sem muito interesse esta polêmica pela revista O Cruzeiro do ano passado. O Dr. Silva Mello teve enorme destaque com fotos muito bem produzidas e espaço suficiente para defender suas teses e atacar todos que lhe eram contrários. Seu trabalho social foi enaltecido. Me lembro apenas ter me chamado a atenção que esta figura ilustre havia declarado à revista que fizera tratamento psicanalítico na Europa e não havia conseguido se livrar das muitas histórias de assombração que teria ouvido em sua infância. Ora, num pais de crendices como o nosso, estas histórias são perfeitamente naturais. O que não vejo com naturalidade é um médico, depois de tratamento psicanalítico, não ter se livrado de seu trauma de meninice.

- Isto por desconhecer a carta que Richet escreveu a Ernesto Bozzano, no final de suas experiências e no final de sua vida, onde esposou a hipótese espírita.

O senhor de tom agudo demonstrava inquietação, enquanto seu interlocutor continuou:

- E ainda aguardo argumentação a respeito da opinião de Richet e Crookes sobre a materialização que Richet batizou de ectoplasmia.

- Falsas suposições e errôneas interpretações.

Argumentou sem muita convicção.


- Foi fato experimentalmente verificado. Para se admitir um fenômeno científico como demonstrado é preciso ser tão severo com as provas quanto se tratasse de condenar um homem à morte.

Neste momento me lembrei de outra polêmica, e esta havia acompanhado junto com minha esposa, onde o padre Álvaro Negromonte nesta mesma década escrevera o livro "O que é o Espiritismo". Ele dizia que "nós sabemos que estas manifestações só podem ser o demônio..." Mesmo sem ter conhecimento do assunto achei explicação deveras simplista para pessoa inteligente, teóloga e que, pela sua condição de padre, não podia deixar de ter estudos de filosofia. E, de tanto minha mulher ouvir a rádio Progresso de São Paulo, sempre as 20:00horas o programa Hora Espiritualista, terminei por me voltar um pouco à estas questões.

- Sem sustentação filosófica. O que faço em minha biopsicologia, sustentado por Max Dessoir.

Propagandeou o Dr. Silva Mello.


- Isto se Schopenhauer não tivesse escrito As Ciências Ocultas. Se a clarividência não confirmasse a doutrina kantiana da idealidade do espaço, do tempo e da causalidade... Se a vontade não fosse a "coisa em si", sugerida por Locke, examinada por Kant, mas solucionada pela filosofia de Schopenhauer.

O senhor calvo pouco respirou para continuar:

- Lembre-se sempre de Emmanuel Kant: "Age de tal modo que as máximas de tua vontade possam sempre, ao mesmo tempo, servir como princípio de uma legislação universal".

Este encontro me trouxe reminiscências de notícias em jornais. Vinha eu de familia militar e não pude deixar de observar que há exatos 4 anos atrás acontecera a Cruzada dos Militares Espíritas de Florianópolis, em Santa Catarina. Ali estiveram presentes durante 4 dias representantes de inúmeras ordens religiosas de todo o pais e do exterior onde meu pai, se vivo, gostaria de estar presente. Me questionava sempre porque corriam processos contra Espíritas como Chico Xavier por causa de direitos autorais. Ali no cinema me senti absorto em pensamentos aos quais não conseguia ter controle algum. Ouvia meus interlocutores mas me sentia distante e como sendo levado a compreender coisas que para mim, até aquele momento, pareciam sobrenaturais e sem grande  interesse. Quando, depois de vários problemas técnicos o filme foi suspenso e o gerente prometia devolver o dinheiro dos poucos presentes me aprofundei em meus pensamentos e perdi de vista os dois cavalheiros que propiciaram aquelas minhas ponderações.

Não me inquieto por não lembrar o nome do filme, como não me incomodei com a garoa fina daquela noite, à saída do cinema. Sentia-me com enorme apetite intelectual e, como se houvesse sido desperto para algo muito além de mim. Caminhei demoradamente pelas ruas, aguardando a autorização do relógio para que fossem abertas as primeiras livrarias do dia seguinte. E lá, na primeira que encontrasse, procuraria o livro de Sergio Valle "Silva Mello e os seus Mistérios", editado pela LAKE, naquele ano de 1959.

Retorno ao Índice

São Paulo 450 Anos - O Espiritismo e os Bairros da Cidade, Carlos Iglesia, Brasil

Normalmente as referências históricas sobre o Espiritismo falam dos grandes vultos da Doutrina, aqui na cidade de São Paulo, por exemplo, de Batuíra e Anália Franco. Mas, paralelamente a estes nomes merecidamente lembrados, há uma infinidade de outros nomes que contribuiram também para a consolidação do Espiritismo em nossa terra, os médiuns e colaboradores de pequenos grupos de bairro. Grupos que muitas vezes mal passaram de umas poucas dezenas de frequentadores, mas que foram a espinha dorsal do Movimento Espírita, que com suas ramificações levaram a mensagem de Kardec as muitas vizinhanças que compõe a capital paulista.

Nestes pequenos grupos - geralmente nascidos de reuniões familiares que aos poucos atrairam amigos e vizinhos - a afinidade espiritual e os laços de amizade entre os frequentadores criam condições para a comunicação enobrecedora entre os dois planos da vida. O atendimento aos enfermos do espírito, o passe magnético, as "consultas" mediunicas, o receituário homeopático e as palestras fazem com que a Doutrina Espírita seja parte da vida cotidiana. É muito dificil com um contato deste, onde a todo momento se testemunham pequenas provas pessoais de que se está lidando com uma realidade maior, duvidar-se da existência dos espíritos e de sua possibilidade de comunicação conosco.

Como outros espíritas paulistanos, tive a oportunidade de conhecer alguns destes pequenos grupos, e como uma forma de falar de todos eles, gostaria de escrever algumas linhas sobre um do qual guardo as mais gratas lembranças.

Lá pelos anos 70 minha familia morava em um pequeno bairro da zona leste de São Paulo, a Vila Aricanduva, onde ficava o grupo espírita "Luz do Evangelho". O grupo se estruturava em torno de um médium excepcional - não só por sua mediunidade mas principalmente por sua bondade e dedicação - o Sr. Armando.

Seu Armando
Foto do médium Armando Cicone[1]
18/06/1924 (São Paulo) - 16/04/1981 (São Paulo)

O "Seu" Armando, como era chamado por todos, era amplamente conhecido no bairro. As salas do centro, localizado em uma casa de dois comodos na Rua Frei Monte Alverne, ficavam sempre lotadas, chegando mesmo as pessoas a ficarem de fora aguardando sua vez de entrar para tomar o passe. Não era raro que o protetor desse alguma orientação ou aviso providencial ao irmão que estivesse tomando o passe. As sessões de desobsessão e de socorro aos sofredores também ocorriam, com público mais restrito, com manifestações mediúnicas abundantes.

Estas sessões, após a prece de abertura, sempre eram iniciadas pela leitura das obras da Codificação ou de uma mensagem espírita. Posteriormente, com a ampliação do Centro - a casinha original, que ficava nos fundos, foi ampliada com a compra da casa da frente - se organizaram palestras e sessões de estudos. Também com a ampliação surgiu a "Mocidade Espírita".

As pessoas do bairro não deixavam de chamar o Seu Armando para o passe aos pacientes mais graves em suas residências e mesmo fora dos dias de sessão o buscavam para as orientações espírituais mais urgentes. E sempre ele atendia com a máxima presteza, dentro das limitações de seu exiguo tempo disponível, pois além de médium e dirigente era também dedicado pai de familia e trabalhador. E, nas melhores tradições da mediunidade espírita, sempre fez os atendimentos, mesmo que lhe exigissem sacrificio, sem aceitar remuneração.

Meu avô, que desencarnou devido ao cancêr, era atendido por ele em casa, sendo os passes um lenitivo bastante eficaz para suas dores. Posteriormente minha avó também foi tratada por ele, em uma época em que andava com a saúde muito ruim. Como outros familiares fui testemunha da eficácia da ajuda espiritual através de sua mediunidade.

Segundo contava o Seu Armando, sua mediunidade se desenvolveu durante a juventude, o que lhe fez passar por grandes dificuldades, até entender o que ocorria. De familia católica, teve seu primeiro contato com as atividades mediunicas na Umbanda até que conheceu o Espiritismo e a ele se dedicou. Um dos espíritos que colaborava nas atividades do Centro se identificava como sendo um "preto velho" e - embora se comunicasse de forma singela - sempre deu provas de grande bondade e capacidade de atuação em prol do próximo. Tanto nas curas como nas sessões de desobsessão era dos mais ativos.

Era muito comum que quando algum vizinho ou amigo estivesse com problemas, espirituais ou materiais, se recomendasse que fosse falar com o Seu Armando. E não era raro que este se tornasse espírita depois disso ou pelo menos simpatizante do Espiritismo.

Querido no bairro, sua desencarnação foi bastante sentida, ficando como testemunho de seu trabalho a gratidão de todos que foram atendidos nas sessões do Centro Espírita "Luz do Evangelho"[2].


Notas

1 - A foto do Sr. Armando foi fornecida por sua esposa, Dona Ana.

2 - O Centro encerrou suas atividades entre 1989 e 1990.

Retorno ao Índice

Questões e Comentários 


Sobre a União da Alma ao Corpo, José Maria, Brasil

Em resposta à questão 344 de O Livro dos Espíritos, sobre o momento de união da alma e do corpo, eles nos informam que "A união começa na concepção (grifo nosso), mas não se completa senão no momento do nascimento. ...".

Em A Gênese, Capítulo XI, item 18, vamos encontrar "Quando o Espírito deve se encarnar num corpo humano em via de formação, um laço fluídico, que não é senão uma expansão do seu perispírito, o prende ao germe para o qual se sente atraido por uma força irresistível desde o momento da concepção. (grifo nosso)

Concepção, segundo o Novo Dicionário Aurélio, do latim conceptione, é "o ato ou efeito de conceber ou de gerar (no útero); geração. Diferente de fecundação, que é o ato ou efeito de fecundar (tornar capaz de conceber ou gerar: fecundar uma mulher. Essas definições do mestre Aurélio nos indicam que fecundação é o momento de encontro do espermatozoide com o óvulo (conforme enciclopédia Delta Larousse) e concepção é o desenvolvimento do embrião a partir de sua nidação (alojamento do ôvo ou zigoto no útero - endométrio), o que acontece no 5º ou 6º dia após a fecundação. Note-se que pode acontecer, inclusive, embora seja um caso raro, de haver concepção sem que tivesse ocorrido a fecundação (partenogênese).

Estou levantando essa questão porque é comum, entre nós, os Espíritas, o entendimento de que essa ligação se dá no momento da fecundação, que acabou sendo reforçado pela narrativa de André Luiz da reencarnação do Espírito Segismundo, no capítulo 13 do livro Missionários da Luz, pag 233 da 20ª edição da FEB.

Gostaria que os queridos amigos do GEAE examinassem comigo esse entendimento, fundamental, assim penso, para equacionar os casos de congelamento de embriões e de descarte natural deles pelo organismo materno, o que ocorre em 70% dos casos. Fundamental, também, para rotular ou não de "abortivos" determinados métodos de contracepção.

Um abraço fraterno a todos, do José Maria Souto Netto, de Marília-sp.

______________________________________________________________________

Ola José,
 
Interessante o fato de você chamar a atenção para essa distinção de significado que acaba tendo conseqüências práticas para o entendimento de como se processa o início da reencarnação. Não posso fornecer senão minha opinião pessoal, que é prejudicada pelo fato de não ter o conhecimento técnico na matéria.
 
Imagino que num processo ordinário (e que vem a termo) de reencarnação, embora a distinção entre fecundação e concepção, esses estágios se confundem ou se sucedem em curto intervalo de tempo. Assim podemos interpretar as colocações de A Luiz dentro de uma aproximação feita seja para simplificar a descrição do processo ou por descuido mesmo com o uso dos termos. No caso do Espírito Segismundo ele foi fecundado e concebido normalmente e, portanto, sua reencarnação pode muito aproximadamente ser descrita como tendo iniciado na fecundação embora a diferença bem lembrada de termos feita com o dicionário Aurélio (que não é fonte espírita).
 
Certamente a distinção que você coloca pode ser parte da causa de apenas 30% dos ovos fecundados e congelados não serem descartados pelo organismo materno, mas acho que devem haver outras razões físicas também que cabe à pesquisa descobrir. A discussão é de fundamental importância no julgamento de métodos abortivos.
 
Vejo o problema da seguinte maneira: não é possível estabelecer uma linha demarcatória seja por meio de um método, de uma simples lei ou procedimento que inequivocamente levaria à classificação desse ou daquele método como "abortivo". Da simples decisão de um casal a não ter filho até a retirada forçado de um feto com 9 meses de gestação, existe um escala contínua de estágios e um ponto intermediário onde a morte provocada do feto é um aborto. Poderíamos talvez dizer "a partir de tal estágio de desenvolvimento do embrião qualquer tentativa de subtrair-lhe a vida será considerado aborto." Mas quem haverá de estabelecer esse limite? É uma questão aberta que deve ser respondida dado a gravidade do assunto. Tudo o que sabemos é que o aborto forçado (praticado contra um feto com várias semanas) é uma atividade que gera profundas cicatrizes na mente materna, cicatrizes que demoram a "fechar" do ponto de vista espiritual.
 
Muita paz,
Ademir - GEAE
_____________________________________________________________

Prezado Ademir,

Agradeço a presteza com que você apreciou a questão que encaminhei. Entretanto, acho que não fui muito feliz na colocação do assunto, motivo pelo qual presto os seguintes esclarecimentos adicionais:

a) a eliminação natural de embriões pelo organismo materno, da ordem de 70%, não tem nada a ver com embriões congelados, são embriões gerados por processo natural de fecundação;

b)  a questão é o momento de ligação do espírito reencarnante ao corpo a ele destinado;

c) se a "força irresistivel que atrai o espírito para o germe" (A Gênese) tem como fato gerador o encontro do espermatozoide com o óvulo (fecundação), então muitos espíritos estariam jungidos a embriões congelados em laboratórios, sabe-se lá por quanto tempo, em casos de inseminação artificial, e muitos outros teriam que recomeçar o processo em decorrência da eliminação natural do germe pelo organismo materno, em casos de fecundação natural;

d) se a "força irresistivel que atrai o espírito para o germe" tem como fato gerador a nidação (acolhimento do germe pelo útero materno), então não há a hipótese de espíritos ligados a embriões congelados e nem a de frustração devido ao processo de expurgo natural pelo organismo materno;

e) esta última hipótese (letra d), se enquadra mais adequadamente ao termo "concepção" utilizado pelos Espíritos em O Livro dos Espíritos e por Kardec em A Gênese;

f) esqueçamos, por enquanto, para não complicar, a questão do aborto.

Finalmente, gostaria que o assunto fosse publicado no Boletim, para que todos os queridos amigos do GEAE tenham oportunidade de participar do exame dessa questão, entre eles, quem sabe, pessoas que possam contribuir do ponto de vista técnico de embriologia, que, tenho de reconhecer, foge ao meu domínio também!

Obrigado, grande abraço, muita Paz!

José Maria Souto Netto.

Retorno ao Índice

Painel


O Exemplo de Paulo Daltro, Fátima Salvo, Brasil


Paulista de nascimento, mas, goiano de coração, Paulo Daltro de Oliveira, criador e diretor da Revista Espírita Allan Kardec, desencarnou aos 68 anos, na tarde do dia 28 de janeiro passado, em Goiânia, após grave enfermidade pulmonar que resultou em dois meses de dolorosa enfermidade.

Desde a juventude ele pautou sua vida  pela exemplificação  do evangelho de Jesus, dividindo seu tempo entre o consultório odontológico, a família e  a Doutrina Espírita.

Foi pioneiro das construções de casas populares, inspirando políticos famosos em realizações idênticas, reunindo companheiros de todas as idades e classes sociais  em memoráveis domingos de mutirões que perduraram por mais de 40 anos e resultaram em centenas de barracões  cujas chaves eram entregues a famílias carentes dentro de exemplares de O Evangelho segundo o Espiritismo. Neste regime, levantou, também, o Posto de Auxílio Espírita e as instalações da Gráfica e Editora Espírita Paulo de Tarso, ambas construções de grande porte em dois andares, ao lado do Lar Espírita Francisca de Lima, o qual dirigia, antigo orfanato de meninas e hoje  abrigando creche, berçário e escola infantil.



Paulo esteve, ainda, à frente de inúmeras atividades espíritas, de organização de cursos e  eventos  doutrinários á promoção social em diversas áreas.


Em 1989, dando curso ao trabalho que mais o empolgava que era a divulgação do Espiritismo, lançou a Revista Espírita Allan Kardec, apreciada por espíritas e não-espíritas em todo o Brasil e no exterior, abordando temas do dia a dia à luz da Doutrina Espírita. A  Revista, totalmente produzida na Gráfica anteriormente montada para atender ás necessidades do Movimento Espírita e da comunidade, alcançou, ao longo de 14 anos, grande sucesso pela maneira simples como passa a Doutrina Espírita  a pessoas de qualquer crença.


Uma característica de sua personalidade que sempre  chamou a atenção de todos foi seu amor ás expressões mais puras da arte, consideradas canais de evangelização do terceiro milênio. A poesia e a música, especialmente de cunho mediúnico, sempre o comoviam. Sua esposa Suzi e todos os filhos seguem seu exemplo, ela á frente do Coral Vozes da Esperança e eles como  integrantes do Grupo Arte Nascente- GAN, ambos muito conhecidos em vários Estados do Brasil.


Paulo não gostava da hora vazia. Desta forma, a sua despedida  foi seu último ato de trabalho  a favor da Doutrina Espírita, na presente encarnação. Em lugar das intermináveis horas de vigília que normalmente descambam para a conversação inútil, canções e reflexões espiritualizadas eram ouvidas durante toda a noite, de forma suave, enquanto  exemplares da  revista  e mensagens impressas estavam á disposição dos participantes, cumprindo assim o seu lema de vida, exarado no pensamento de Emmanuel: “ A maior caridade que fazemos à Doutrina Espírita é a sua divulgação.”


Ao escrevermos estas  poucas palavras sobe Paulo Daltro de Oliveira, não queremos idolatrá-lo, e ele jamais permitiria tal atitude. Apenas julgamos que, num mundo tão conturbado, em que tantos estiolam seu tempo e talentos, é sempre bom contarmos com bons exemplos que nos inspirem e fortaleçam na Seara do Bem.

Fátima Salvo

Retorno ao Índice


GRUPO DE ESTUDOS AVANÇADOS ESPÍRITAS

O Boletim GEAE é distribuido por e-mail aos participantes do Grupo de Estudos Avançados Espíritas
Inscrição/Cancelamento - inscricao-pt@geae.inf.br

Informações Gerais - http://www.geae.inf.br/pt/faq
Conselho Editorial - editor@geae.inf.br
Coleção dos Boletins em Português - http://www.geae.inf.br/pt/boletins
Coleção do "The Spiritist Messenger" - http://www.geae.inf.br/en/boletins
Coleção do "Mensajero Espírita" - http://www.geae.inf.br/el/boletins