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Primeiro grupo espírita da internet

Fé - o desafio

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É uma verdade incontestável que o passado não pode ser refeito. Mas, simplesmente esquecê-lo, não nos ajuda a construir o presente nem o futuro. Ao contrário, pode ensejar tristes repetições.

Acontecimentos recentes, no Brasil e no mundo que, infelizmente, para muitos não passa de tragédia banal, coisa que já não choca, nos remetem a tristes capítulos da história.

Em 2006, o Papa Bento XVI, apresentando-se como “filho da Alemanha”, visitou a Polônia, incluindo o local que foi o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Depois de ouvir o kaddish, a oração judaica pelos mortos, Ratzinger confessou sua dificuldade em falar naquele local. "Num lugar como este, as palavras falham. No fim, só pode haver um terrível silêncio, um silêncio que é um sentido grito dirigido a Deus: porquê, Senhor, permaneceste em silêncio? Como pudeste tolerar isto? Onde estava Deus nesses dias? Por que esteve ele silencioso? Como pôde permitir esta matança sem fim, este triunfo do demônio?" O Papa disse ainda que Hitler e o nazismo quiseram eliminar os judeus, que estão "na raiz do cristianismo", porque queriam "matar Deus". Queriam "apagar todo o povo judeu, apagar este povo do registro dos povos", disse Bento XVI. Uma frase que o embaixador de Israel na Polônia, David Peleg, considerou a mais importante do discurso.

O episódio ficou na história. Deve servir como alerta para a forma como trabalhamos nossos desafios existenciais. Bento XVI foi humilde e sincero em sua fala. Sua atitude e suas palavras merecem profundo respeito e longas reflexões de nossa parte, seja qual for nossa fé. Um Papa permitindo-se vivenciar momentos de fragilidade e dúvidas é muito significativo. Hoje, ao vermos notícias de crianças sendo brutalmente assassinadas em escolas, a pergunta do Papa volta a ribombar em nossas mentes. É uma pergunta incômoda e complexa diante de um problema igualmente complexo que jamais deveria ser banalizado. Não adianta buscarmos respostas simplistas motivadas por arroubos de indignação, de vingança ou de certezas dogmáticas. A sociedade humana vem acumulando erros por conta de escolhas equivocadas nas relações sociais entre os indivíduos e destes com a natureza. Há uma busca desenfreada e egoísta pelo sucesso e pela felicidade imediatos com base apenas no efêmero. A cultura da violência, do individualismo, do levar vantagem, do vale tudo por dinheiro, instalou-se qual metástase cancerígena na sociedade humana. Para muitos, a fé não passa de uma tolice, ingenuidade de quem não tem competência para “vencer” na vida, sendo “vencer”, o puro desejo selvagem de aniquilar o próximo, eliminar sua concorrência. Esse é o paradoxo do materialismo que acabará por sucumbir por falta de matéria.

Neste cenário, a fé surge como uma espécie de luz no fim do túnel. Não é uma tolice, embora possa trilhar caminhos ingênuos por não conseguir se desapegar completamente do egoísmo comodista.

Aqui vale resgatarmos uma fala de Chico Xavier em entrevista de 1972 com Herculano Pires (https://www.youtube.com/watch?v=CUJ-Hy0u29U). Nessa ocasião, Herculano e Chico conversaram sobre várias questões referentes à transição do planeta Terra para uma condição melhor que a atual. Falaram sobre poluição, crescimento populacional, calamidades naturais dentre vários outros temas. Chico, falando em nome de Emmanuel, seu guia espiritual, disse com muita clareza que a espiritualidade maior tem acompanhado com atenção e zelo a evolução do planeta, mas isso não deve desobrigar a nós, encarnados, de fazermos nossa parte para o concurso do progresso. Chico alerta que o homem novo ainda não havia, até aquela data, dado sinais claros de sua chegada à Terra. Chico fala inclusive sobre a necessidade de cuidarmos da poluição moral, principal causadora da poluição física dentre outras mazelas que pairam sobre o planeta.

O recado é claro, principalmente para nós espíritas. Fé na atuação dos espíritos desencarnados em prol dos encarnados deve ser acompanhada da consciência de que nós, encarnados, também somos atores do processo evolutivo, cabe a cada um cuidar de sua reforma íntima e do exercício do amor e da caridade divulgados por Jesus. Fé de que espíritos superiores ou Deus estarão segurando nossa mão e nos conduzindo por todo o caminho em direção ao futuro, é má fé. É duvidar da grandeza divina que nos dotou de inteligência e livre arbítrio dando-nos plena autonomia para aprendermos com nossos erros. Seria leviano imaginar que Deus não contasse com nossos erros, inclusive com os mais grosseiros e bárbaros. Mas é assim que caminhamos para o futuro, errando, caindo, arrependendo-se e tentando de novo. A fé sem essa consciência é realmente ingênua e tola. Repugna a razão imaginar que Deus nos deu inteligência e livre arbítrio para depois nos conduzir qual marionetes, até porque, a lei de causa e efeito não é determinista, é dinâmica. Permite a cada instante revisarmos e modificarmos nossas metas evolutivas.

Por isso, fé é um conceito complexo, coisa íntima, fruto de uma história de vida, ou, quem sabe, de muitas vidas. Colocar esse sentimento em cheque é necessário e importante, mas deve ser levado a efeito com muita ponderação e respeito. Ninguém é dono da verdade. A fé, na forma de uma certeza dogmática, abre brechas para muitos equívocos e decepções. Isso precisa ser refletido com muita seriedade e profundidade por todos.

As dúvidas do Papa se apresentam como valiosa lição para todos. Fé não é uma tolice ingênua nem cai do céu. Fé é o grande desafio à nossa inteligência racional e emocional, sejamos espíritos caminhantes sobre a Terra ou errantes na dimensão espiritual. Por isso, tudo que nos choca e nos decepciona no mundo atual não deve ser visto como mera presença de espíritos primitivos entre nós. Isso é fato. Mas é fato também a presença de grande número de espíritos acomodados em torno de uma fé dogmática puramente contemplativa, aguardando que os anjos desçam dos céus para nos salvar. Quem sabe, muitos de nós espíritas, não estejamos entre esses últimos. Que ninguém se iluda!. A adoração e oração sem ação de pouco ou de nada serve. Tudo se passa conforme as leis divinas. Tudo está submetido à lei de causa e efeito. A fé precisa ser proativa. Precisa buscar compreender antes de crer. Este foi o projeto dos espíritos superiores intermediados por Kardec, cuja obra completa, infelizmente, é mal conhecida e mal compreendida. A doutrina espírita é proclamada aos quatro ventos pelos simpatizantes como um triângulo de saberes religiosos, filosóficos e científicos. Entretanto, o que se vê na prática da maioria, é apenas o culto religioso ao Evangelho Segundo o Espiritismo. Os valores filosóficos e científicos do espiritismo são relegados a segundo plano. Não é a toa que a comunidade acadêmica, com algumas exceções, riem-se da pretensão científica e filosófica do espiritismo.

Se for feita uma estatística entre simpatizantes para explicar o que é o espiritismo científico, poucos saberão responder. Poucos irão se lembrar ou, na verdade, saber como foi o contato inicial de Kardec, à época, Hippolyte Léon Denizard Rivail, com os fenômenos que agitavam os salões da sociedade francesa, dentre outros da Europa, Estados Unidos e inclusive do Brasil. Poucos se dão conta do gigantesto trabalho de Kardec, reunindo informações, comparando, analisando e confrontando as respostas dos diferentes médiuns de diversas partes do mundo para verificar a coerência e certificar-se da credibilidade da informação. É uma longa história e os interessados, se de fato estiverem interessados, saberão onde se informar a respeito. Basta querer.

É claro que a parte religiosa do espiritismo é importante. Mas cultuar o Evangelho Segundo o Espiritismo do mesmo modo como outras religiões cultuam a Bíblia ou qualquer outro texto considerado sagrado, é fazer do espiritismo mais uma dentre outras religiões. Não é essa a proposta do espiritismo. Perceba, não vai aqui demérito algum para com as religiões, muito pelo contrário. O estudo mais aprofundado e consciente da doutrina espírita, em todas as suas dimensões, permitirá uma melhor compreensão das várias formas como o ser humano se relaciona com seus desafios existenciais. Isso ampliará o respeito que deve haver entre as religiões e a importância do diálogo inter-religioso. O espiritismo não pode ser apenas uma outra religião, precisa assumir o papel de aglutinador e construtor de uma fé que não olvide a razão, mas seja o complemento necessário desta no estabelecimento de uma estratégia reformadora para o futuro da humanidade. Talvez seja uma analogia simplista, mas o triângulo, dentre todas as formas geométricas, é uma estrutura indeformável. Seus três vértices definem um único plano. A forma triangular pode ser reconhecida em quase toda estrutura arquitetônica e até mesmo em muitas obras de arte por sua rigidez estrutural. É, pois, interessante percebermos a importância de uma doutrina que se apoie sobre o triângulo dos saberes humanos, o religioso, o científico e o filosófico. Querer eleger um deles como mais importante relegando os demais a segundo plano é negar a grandiosidade do Criador. É recusar o papel de ator na transformação de si próprio e do mundo. É assumir a condição de mero adorador apático esperando a salvação imobilizado pelo comodismo egoísta.

Urge nos questionarmos se estamos, de fato, fazendo nossa parte para evolução do planeta. Não precisa ser coisa grandiosa como a dos grandes líderes. Basta sermos mais comprometidos com nossos entes queridos. Basta sermos mais tolerantes e educados no trânsito. Basta sermos mais atenciosos com os humildes, aqueles socialmente denominados invisíveis. São nossos irmãos coletores de lixo, catadores de papel, serventes de obra, auxiliares domésticos, dentre outros. Não custa nada um sorriso e um bom dia para eles e para todos os outros que passam o dia atendendo longas filas humanas em diversos setores da sociedade. Não custa passarmos aos nossos filhos a importância dos professores. Não custa passarmos aos nossos filhos o mal que pode fazer o bullying entre os colegas. Não custa ensinarmos os nossos filhos que não é a roupa nem o brinquedo mais bonito que faz o coleguinha ser importante. Tudo isso, dentre muitas outras pequenas coisas que, acreditamos, não precisam ser enumeradas, constitui o que Kardec chamou de fé raciocinada. Fé não é adoração nem oração. Fé é ação; é compreensão no amplo sentido da palavra. Fé é o estudo e busca permanente pelo sentido da vida, pela importância do amor e da caridade verdadeiros. Fé inabalável não é a certeza dogmática. Fé inabalável é a que não se esquiva do permanente exame racional e está sempre em sintonia com a realidade humana.

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Cesar Boschetti

Graduado em Física pela Universidade de São Paulo (1978), com mestrado e doutorado na área de tecnologia de materiais semicondutores. Atuou como pesquisador, tecnologista e coordenador de setor de P&D englobando materiais especiais, física de plasmas, computação aplicada e combustão do INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais de 1979 a 2019 quando se aposentou. É escritor espírita e atualmente Editor-Consulente do GeaE.