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Primeiro grupo espírita da internet

A pesquisa qualitativa entre a fenomenologia e o empirismo-formal (III)

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ZILLES (1994) fez uma síntese da evolução dos conceitos de fenômeno em Filosofia, onde mostra haverem pelo menos dois sentidos marcantes: o primeiro, mais amplo, significaria “tudo o que aparece, se manifesta ou se revela” e está conectado a tudo o que existe exteriormente, ou seja, os fenômenos físicos. Kant, entretanto, notabilizou-se ao distinguir o fenômeno da coisa em si (que denominou “noumenon”). Para eles os fenômenos seriam os objetos da experiência, e as

“coisas em si” seriam “incognoscíveis e transcendentes à experiência”.

Edmund Husserl (1859-1938) irá construir a Fenomenologia como uma vertente crítica ao naturalismo vigente à sua época, que insistia em negar a subjetividade para estudar os fatos naturais como se fossem uma realidade única. Volta-se, portanto, ao mundo interior dos homens, chamado transcendental¹, onde ser fará a conexão possível entre as coisas em si e as idéias. Husserl privilegia, portanto, o estudo da consciência que define como uma instância psíquica que constitui

significações, seja ao apreender ou ao constituir os significados dos acontecimentos naturais ou psíquicos.

A consciência é entendida pela Fenomenologia de Husserl como sendo um “fluxo temporal de vivências”, peculiar, porque é imanente, ou seja, capaz de dar sentido às coisas e de apreender através da intuição aquilo que é universal, já que ela capta a multiplicidade de fatos e a sua essência comum. Outro aspecto importante da consciência diz respeito à sua “intencionalidade”. Chauí (1988) descreve a intencionalidade como “dirigir-se para, visar alguma coisa”, o que a torna uma atividade constituída de atos que visam a algo. “Toda consciência é uma consciência de algo.” Husserl denomina a estes atos, que podem ser perceptivos, imaginativos, especulativos, volitivos, etc., com o termo noesis, e aquilo a que visam com o termo noema. Os noemas estão presentes na consciência sem serem partes dela.

Husserl distingue ainda dois níveis de noesis; o nível empírico onde se identificam atos psicológicos e individuais para conhecer um significado independente deles, e o nível transcendental onde as noesis são atos do sujeito constituinte que cria os noemas enquanto idealidades puras ou significações.

“A fenomenologia husserliana pretende estudar, pois, não puramente o ser, nem puramente a representação ou aparência do ser, mas o ser tal como se apresenta no próprio fenômeno. E fenômeno é tudo aquilo de que podemos ter consciência, de qualquer modo que seja.” (ZILLES, 1994. p. 125)

Outro conceito importante para o entendimento da fenomenologia reside na dinâmica da relação entre o fato e a consciência. Como já afirmamos acima, Husserl trabalha com as intuições da consciência como sendo os elementos constituintes do conhecimento. Elas, entretanto, só constroem conhecimento à medida que são capazes de perceber as essências, distinguindo diferentes possibilidades de representação dos objetos.

“Dizemos que dois atos intuitivos possuem a mesma essência quando as suas intuições puras têm a mesma matéria. ...Todas as intuições objetivamente completas de uma mesma matéria têm a mesma essência.” (HUSSERL, 1988. p. 78)

Uma vez aceita a premissa husserliana se pergunta como fazer ciência, ou ainda, o que é ciência para a fenomenologia. O critério de verdade em Husserl (1988, p. 94) é definido como “a plena concordância entre o visado e o dado como tal”, ou, como interpreta Chauí, entre “o ato de conhecer e o seu correlato”. Isto não significa que a verdade seja apenas uma verdade subjetiva, no sentido de ser considerada apenas no recesso do pensamento de seu criador, mas reflete a ordem das coisas.

A questão a que esta afirmação nos remete é: como pode o agente do conhecimento distinguir as essências das coisas e não ser iludido pelas aparências da realidade exterior ou pelos conteúdos pré-existentes da sua consciência?


ZILLES e CHAUÍ identificam três condições propostas por Husserl para a fundamentação de uma ciência de rigor:

a) ausência de pressupostos: ou seja, o pesquisador evitaria considerar o que já foi dito por pensadores ou pela teoria, indo diretamente às coisas mesmas, buscar suas essências. A epoqué consiste “em nos abstermos por completo de julgar acerca das doutrinas de qualquer filosofia anterior e em levar a cabo todas as nossas descrições no âmbito desta abstenção”. (Husserl apud Zilles, 1994. p. 128)
b) o caráter a priori: que significa desconfiar dos dados empíricos para fundamentar-se em idealidades (“as coisas mesmas”) da consciência transcendental, a única capaz de captar as essências. Entende Husserl que a intuição da essência é diferente da percepção do fato. É fácil ilustrar este tipo de postulado quando se observam ações de pessoas, que estão revestidas de intencionalidades. A mera observação do resultado da ação ou da ação em curso não revela a intencionalidade do sujeito. O trabalhador que opera em ritmo lento pode estar protestando contra a fábrica, estar estressado, despido de conhecimento necessário para a realização de sua atividade, disperso, preocupado com problemas de casa, ou por uma infinidade de motivos.
c) evidência apodítica: seriam as bases das construções dos juízos (aos moldes do pensamento cartesiano). Seriam evidências “com ausência total de dúvida”, cuja obtenção se dá a partir das reduções fenomenológicas que Zilles descreve da seguinte forma:
“Para chegar ao fenômeno puro, Husserl suspende o juízo em relação à existência do mundo exterior (transcendente). Descreve apenas o mundo como se apresenta na consciência, ou seja, reduzido à consciência. Tal suspensão ou colocação entre parênteses chamou epoqué. Portanto, não duvida da existência do mundo, mas simplesmente o põe “entre parênteses” ou o idealiza ou o reduz ao fenômeno: a redução fenomenológica. No fenômeno, por sua vez, procede a sucessivas reduções em busca da essência: a redução eidética. Assim entende a fenomenologia como análise descritiva das vivências da consciência depuradas de seus elementos empíricos para descobrir e apreender as essências diretamente na intuição.” (ZILLES, 1994. p. 130-131)

Não é de fácil entendimento a delimitação da redução eidética como método. De Bruyne (1991) entende, a partir de Merleau Ponty, que se o pesquisador imaginar todas as relações implicadas por um fenômeno e o fizermos variar, pela imaginação, tudo o que não puder ser variado sem que o objeto desapareça é uma essência.

A Fenomenologia, apesar de se situar como uma ciência rigorosa, não se acha descrita metodologicamente de forma prescritiva, o que levou Martin Heiddegger, discípulo de Husserl a escrever uma frase que ficou famosa: “compreender a Fenomenologia é apreender suas possibilidades”. Como a fenomenologia fez escola, alguns dos seus pesquisadores realizaram esforços de apresentação compreensiva do método. Bruyn, por exemplo, fez uma releitura do trabalho de Spigelberg, onde se identificam sete “passos” do método fenomenológico, a saber:


                                        “1. Investigar fenômenos particulares

2. Investigar essências gerais
3. Apreender as relações essenciais entre as essências
4. Observar os modos de aparecimento
5. Observar a constituição dos fenômenos na consciência
6. Suspender a crença na existência do fenômeno
7. Interpretar o significado do fenômeno. (BRUYN, 1970. p. 284)

Miles e Huberman (1994) tecem outra consideração metodológica sobre o trabalho dos fenomenologistas. Eles afirmam que os pesquisadores desta orientação freqüentemente trabalham com transcrições de entrevistas e que são cuidadosos na condensação deste material. Evitar-se-ia o uso de codificação, mas trabalhar-se-ia fazendo releituras continuadas nas fontes primárias com cuidados para com suas próprias pressuposições para capturar-se a essência (o lebenswelt do informante). Podemos adicionar que os discípulos da fenomenologia empregam outros métodos que não a leitura de entrevistas transcritas, utilizando também a observação participante.

Parece-nos que a fenomenologia tem seu lugar nas ciências humanas e sociais e que a tentativa de empregá-la como método de análise de objetos próprios das ciências naturais é infrutífero, posto que eles se acham despidos de intencionalidade ou de consciência de si. Neste campo a aparência estaria mais “próxima” das essências; os determinismos são mais patentes e, por tal, os métodos empírico-formais são mais produtivos, já que se focalizam na identificação de regularidades e conseqüente construção teórica, seja pela via da indução, seja pela do método hipotético-dedutivo.

Miles e Huberman situam a fenomenologia, a semiótica, o desconstrutivismo estético, a etnometodologia e a hermenêutica em uma única categoria de linhas de metodologia de pesquisa, denominada interpretativismo. Eles consideram que apesar de suas diferentes ênfases e variações, há uma linha comum de ação e compreensão.


O Que é Pesquisa Qualitativa?

Um bom número de autores entende a pesquisa qualitativa como sendo uma pesquisa cujas variáveis não podem ser mensuradas a nível intervalar ou de razão. PARASURAMAN (1986), por exemplo, define-se nesta linha:

“Pesquisa qualitativa envolve coletar, analisar e interpretar dados que não podem ser significativamente quantificados, isto é, sumarizados em forma de números. Por esta razão a pesquisa qualitativa é algumas vezes considerada como uma pesquisa soft.” (PARASURAMAN, 1986. p. 240)

Sampson leva esta concepção às suas conseqüências:

“A pesquisa qualitativa é usualmente exploratória ou diagnóstica. Ela envolve um número pequeno de pessoas que não estão amostradas em uma base probabilística. Elas podem, contudo, serem selecionadas para representar diferentes categorias de pessoas de um mercado-alvo ou segmento da comunidade. Em pesquisa qualitativa nenhuma tentativa é feita para obter conclusões rápidas e sólidas (hard)” (SAMPSON, 1991. p. 29)


Estas visões estão associadas à concepção empírico-formal de ciência. Outros autores defendem uma definição um tanto diferente de pesquisa qualitativa.

Kirk e Miller ampliam o conceito de pesquisa qualitativa dizendo que ele pode ser visto a partir de duas óticas: a ótica da “oposição à quantidade” e a da tradição das ciências sociais que “fundamentalmente dependem da observação de pessoas em seu próprio território e interagindo com elas em sua própria linguagem, em seus próprios termos”. Eles consideram a primeira definição limitada e se posicionam da seguinte forma:

“A partir da nossa visão pragmática, a pesquisa qualitativa implica em um comprometimento com atividades de campo. Não implica em um comprometimento com a “inumeração”. A pesquisa qualitativa é um fenômeno empírico, socialmente localizado, definido pela sua própria história, não apenas um “saco de gatos” que compreende todas as coisas que não são quantitativas.” (KIRK e MILLER, 1988. p. 10)

Eles adotam uma posição epistemológica interessante. Se por um lado não crêem que o mundo externo determina absolutamente a única e correta forma visão que se pode ter dele (positivismo) pelo outro lado criticam a posição oposta e extrema de que é possível encontrar explicações alternativas para tudo e com isto desistir de fazer qualquer esforço de escolha entre elas (relativismo). Recordam-nos de que há um outro lado da objetividade: a de que o mundo externo existe, apesar de tudo (realismo).

Posição semelhante é a de Miles e Huberman (1994) que se definem como “realistas transcendentais” por acreditarem que o fenômeno social não existe apenas na mente, mas também no mundo objetivo e que algumas relações estáveis podem ser encontradas entre eles.

Glazer e Strauss (1970) criticam a concepção empirista-formal da teoria científica, como a concepção de Sampson apresentada acima, e defendem que a pesquisa qualitativa não é uma preliminar da pesquisa quantitativa, mas que pode ser a base da formulação e descoberta de “teoria substantiva”. Os métodos clínicos têm sido a base de inúmeras teorias em Psicologia. A psicanálise e a epistemologia genética de Jean Piaget são exemplos de teorias que se tornaram globalmente difundidas. Nas ciências sociais, a etnometodologia e o interacionismo simbólico têm sido construídos a partir dos métodos qualitativos, quase que exclusivamente.

Em um outro extremo temos a definição de um cientista social, Cicourel (1969), que seria considerado relativista por Miles e Huberman, já que ele considera semelhantes o dogma religioso e a ciência, considerando-os ao mesmo tempo como corpos de conhecimento e ideologias, já que ambos possuem “seus próprios pressupostos teóricos, métodos e regras para admitir proposições para o seu respectivo corpo de conhecimento”. Ele entende que “o mundo dos “observáveis” não está simplesmente “lá fora” para ser descrito e medido com os sistemas de mensuração da ciência moderna, mas o curso dos eventos históricos e das ideologias de uma dada era pode influenciar o que está “lá fora” e como estes objetos e eventos devem ser percebidos, avaliados, descritos e medidos”. (CICOUREL, 1969. p. 38). Com base nesta perspectiva, ele evita a análise de métodos pela via da distinção entre sistemas científicos e metafísicos, ou se representam ideologias particulares, mas considera-os todos como meios de obter conhecimento sobre o mundo social.

Ely et al. (1996) também definem a pesquisa qualitativa de uma perspectiva diferente, que não pode ser considerada relativista como a de Cicourel, mas fenomenológica. Estas autoras consideram pouco compreensivo definir o termo “pesquisa qualitativa”, sendo melhor analisar características comuns de seus métodos. Elas identificam cinco características que consideram comuns a todo tipo de pesquisa qualitativa:

“1. Os eventos só podem ser entendidos adequadamente se eles são vistos no contexto. Por isto, o pesquisador qualitativo imerge-se no “setting”.
2. Os contextos de questionamento não são planejados, eles são naturais. Nada é predefinido ou suposto.
3. Os pesquisadores qualitativos querem que aqueles que são estudados falem por si mesmos, para que forneçam suas perspectivas em palavras e outras ações.  Conseqüentemente, a pesquisa qualitativa é um processo interativo no qual as pessoas estudadas ensinam ao pesquisador sobre suas vidas.
4. Os pesquisadores qualitativos presenciam a experiência como um todo, não como variáveis separadas. O objetivo da pesquisa qualitativa é compreender a experiência de forma global².
5. Os métodos qualitativos são apropriados às afirmações acima. Não há um método geral.
6. Para muitos pesquisadores qualitativos, o processo em seu curso fornece uma avaliação do que foi estudado”. (ELY et al., 1996. p. 4)

As autoras sintetizam bem em seu texto as diretrizes interpretacionistas para a pesquisa qualitativa, mas certamente não compreendem com elas o tipo de investigação realizado por cientistas como Parasuraman. Isto nos conduz às considerações finais deste despretensioso trabalho.

¹ ZILLES (1994) mostra a distinção que o pensador austríaco faz entre o transcendental e o transcendente. Enquanto o primeiro é fruto da consciência, o último termo é empregado referindo-se ao mundo exterior.

² “..to understand experience as unified.”

Artigo publicado originalmente na Revista de Administração da Universidade de São Paulo

[SAMPAIO, Jáder dos Reis. A pesquisa qualitativa entre a fenomenologia e o empirismo formal. 
Revista de Administração. São Paulo, v. 36, n. 2, p.16-24, abr/jun 2001.]
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