A Intensidade de
uma Vida, WGarcia, Brasil
Recife-PE
Dezembro, 15, 2005. Eduardo partiu hoje, pela manhã. Pela
Júlia Nezu e outros amigos recebi a notícia. Estive com
ele no Hospital Alvorada dia 29 de novembro, em companhia do amigo
comum Maurício Ribeiro. Estava esperançoso de retomar as
atividades normais, mas sabia-se em grandes dificuldades. As pernas sem
movimento, a voz baixa e marcas de incisões nos braços e
no corpo. Reclamou de não poder mudar de posição
no leito. Fez-nos, emocionado, confidências particulares,
confidências que a nós faziam sentido e tinham imenso
valor. Por cerca de uma hora, conversamos amenidades e recordamos fatos
passados. Enfim, o deixamos. Era a despedida de quem estava de retorno
aos campos floridos de um espaço sideral deixado anos
atrás, onde a vida tem outros sentidos mais e, certamente, novas
e fortes emoções.
Este momento sereno me conduz a relembrar a trajetória que,
juntos, fizemos. Ficaria eu bastante chateado se não tivesse
tido a feliz idéia de visitar o Eduardo em seu leito hospitalar,
poucos dias antes de sua partida. Era preciso que isso ocorresse. Por
muitas razões, entre as quais a de que ele se fez presente em
grande parte da minha vida, especialmente em momentos cruciais.
Recordar, portanto, a nossa trajetória significa prestar um
preito de gratidão a quem realizou um grande e despretencioso
trabalho pela causa do Espiritismo, na qual acreditava com todas as
forças.
O início de tudo
Conheci Eduardo em 1978. Por alguma indicação da qual
não me recordo, ele nos procurou na Editora Correio Fraterno do
ABC para oferecer o livro que havia concluído sobre a vida de
Jésus Gonçalves. A editora, como tal, era nova. Havia
lançado então apenas dois títulos: “O Besouro
Casca-Dura e outros contos”, de Iracema Sapucaia, e “Eurípedes
Barsanulfo, o Apóstolo da Caridade”, de Jorge Rizzini.
Provavelmente, Eduardo se motivou a nos procurar em vista deste
último livro, pois, curiosamente, o seu copiava o título
daquele: “Jésus Gonçalves, o Apóstolo da
Caridade”. Ao entregar os originais, disse: “Faça uma
revisão e o prefácio”.
Estávamos às vésperas do Carnaval. Coloquei os
originais na mala e demandei com a família para minha cidade
natal na Zona da Mata mineira. Ali, pus-me a ler com
atenção o livro e procedi a diversas
anotações, sugestões de mudanças e alguns
cortes. Eduardo, então, já se mostrava um arguto
pesquisador, mas carecia de melhores condições no preparo
do texto e na organização das diversas partes do livro.
Entre as minhas sugestões estava a de mudar o título para
“A extraordinária vida de Jésus Gonçalves”, sob o
argumento de que havia uma diferença fundamental entre a vida de
um apóstolo e a de uma grande figura, na qual mais bem se
encaixava o biografado. Eduardo resistiu um pouco mas, enfim, aceitou.
Creio que cedeu por conta de desejar ver logo publicado aquele que
seria o primeiro livro de sua copiosa produção
literária.
O adjetivo extraordinário contido no título do livro logo
se aplicou, também, à sua aceitação pelo
público: em menos de três meses se esgotaram os seis mil
exemplares da edição, edição logo sucedida
por outras e outras mais, tornando-se, assim, um verdadeiro sucesso de
venda.
Iniciava ali, também, uma longa convivência entre
nós, convivência que se estenderia à vida privada
de ambos, bem como nos levaria a produzir alguns livros em regime de
co-autoria. A mim coube, também, publicar vários outros
livros do Eduardo e alguns com o meu prefácio.
Passei a dividir com o Eduardo o cotidiano, conheci seus dramas
familiares, a trajetória obsessiva pela qual passou, sua chegada
ainda jovem a Uberaba pelas mãos de uma grande amiga, a
relação com Chico Xavier e sua adesão
incondicional ao Espiritismo. Sabia-se mudado profundamente após
essa dura experiência que a obsessão lhe impusera.
Torcedor quase fanático do São Paulo Futebol Clube, tinha
cadeira cativa no Morumbi e chegou a ser chefe de torcida organizada.
Ao assumir o Espiritismo, não deixou de acompanhar o clube do
seu coração nem de torcer freneticamente por ele, mas foi
reduzindo sua presença nos estádios e substituindo o
tempo ali gasto por atividades mais úteis ao ser humano e
à sociedade.
Algum tempo depois do lançamento do seu livro sobre Jésus
Gonçalves, Eduardo organizou um outro livro, com páginas
psicografadas pelo médium Eurícledes Formiga, poeta
premiado, de autoria do conhecido espírita Rubens Romanelli.
Eduardo se afeiçoou a Formiga e tornou-se um de seus melhores
amigos, acompanhado-o em suas atividades mediúnicas até o
retorno de Formiga ao mundo invisível. O livro tem por
título “Construções do Espírito”.
Psicólogo por formação acadêmica, mas sem
exercer a profissão, Eduardo esteve conosco em 1982, no VIII
Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, na
capital baiana, integrando-se desde então na comissão que
assumiu naquele evento máximo do Espiritismo de então a
responsabilidade de realizar em São Paulo o próximo
congresso. Ali também tivemos contato pela vez primeira com o
médium Edson Queiroz, com quem o famoso Espírito do
médico alemão Doutor Fritz realizava cirurgias
mediúnicas.
Muito bem impressionados com a destreza mediúnica do
médium, combinamos levá-lo à capital paulista,
para atendimento público. Como, na ocasião, eu dirigia,
também, o jornal “O Semeador”, da Federação de
São Paulo, obtive com o então presidente, João
Batista Laurito, o necessário apoio material e institucional
para Edson em São Paulo. Vale registrar que foi esta a primeira
(e última) vez que aquela instituição promoveu em
suas instalações um evento de tal natureza, rompendo por
instantes com os limites impostos pelo preconceito em
relação a fenômenos mediúnicos dessa
natureza. Mas não saiu impune o presidente Laurito. E nós
também. O registro dessa desafiadora ação
está no livro de minha autoria de título “Sinal de vida
na imprensa espírita”, Editora EME.
Eduardo participou de tudo isso, lado a lado comigo. A comissão
encarregada de organizar em São Paulo o próximo congresso
de jornalistas e escritores teve nele o principal esteio, seja para
enfrentar o desafio de um cometimento de tal envergadura, seja nos
conflitos que se estabeleceram por conta de uma oposição
política cujo interesse estava centrado no insucesso do
congresso. Trabalhou ele arduamente em todas as etapas, da
organização do temário à
definição dos oradores, da escolha do local aos acertos
dos detalhes mais simples. A ele se deve uma das maiores parcelas do
sucesso do XIX congresso realizado em 1986.
Logo nos primeiros tempos de organização do evento,
propus ao Eduardo o desafio de escrevermos um livro sobre o patrono,
Cairbar Schutel, com a finalidade de lançá-lo na abertura
do congresso. Eduardo arregaçou mangas também aí
e, juntos, passamos a fazer pesquisas, viajando diversas vezes a
Matão, onde Cairbar realizou seu grandioso trabalho, bem assim a
diversos outros lugares para entrevistas e levantamento de
informações necessárias.
Valem alguns registros curiosos e interessantes. A franqueza com que os
faço será, não tenho dúvida, apreciada pelo
Eduardo. Se não o for, porém, será apenas mais um
dos conflitos que vivenciamos em nossa relação de grande
amizade e sentimentos recíprocos de afeto, conflitos que, se em
alguns momentos nos distanciaram um do outro, não foram jamais
suficientes para destruir uma amizade de longo tempo e muitas vidas.
Tinha eu a intenção de participar com o Eduardo das
pesquisas e trabalhar no texto final do livro. Eduardo não
comungava da idéia. Antes, havia guardado desde 1978 um certo
ressentimento pelo fato de haver eu interferido em seu livro sobre o
Jésus Gonçalves, em especial pelas supressões
sugeridas e os acertos estéticos do texto.
Sem nada comentar a respeito no curso das pesquisas, ao aproximar o fim
do prazo para entregarmos à Editora o livro, veio até mim
com uma pasta e disse: “Aqui está a minha parte. Leia, mas vou
logo avisando, eu não aceito nenhuma mudança”. Surpreso,
também bati o pé. Silencio por silencio, eu ganho, pois
sou mineiro. Não li a parte do Eduardo, apenas juntei o que
havia escrito e entreguei tudo ao Aparecido Belvedere, da Editora O
Clarim, para a edição do livro.
Um outro fato interessante. Eduardo e eu, na companhia do amigo comum e
inesquecível companheiro Hélio Rossi, que também
integrava a comissão do congresso, estávamos na sede da
Editora O Clarim discutindo com os seus diretores a respeito de
detalhes do livro que estava na fase de pesquisa. Havia algumas
informações sobre o biografado que Eduardo, com minha
aquiescência, julgava ser necessário registrar no livro.
Éramos de parecer que uma biografia não deveria omitir
detalhes, mesmo que algum deles não fosse totalmente positivo
para o biografado. Era o caso. Os diretores não aceitaram,
argumentando que não havia prova definitiva sobre o
acontecimento em análise. O conflito se estabeleceu e foi por
diversas vezes discutido. No final, prevaleceu o argumento da Editora.
Fica do fato uma revelação sobre a personalidade do
Eduardo, sempre disposto a defender a verdade, independentemente das
circunstâncias e contextos.
Enfim, em abril de 1986, o livro “Cairbar Schutel, o bandeirante do
Espiritismo” foi lançado na sessão de abertura do XIX
Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, no
Centro de Convenções Rebouças, em São
Paulo. Deste congresso resultou ainda um outro livro, cuja autoria
assumi, publicado em 2004 com apoio da Associação
Brasileira de Divulgadores do Espiritismo (Abrade) e cujo título
é “Espiritismo Cultural: Artes, Literatura e Teatro”.
Outros trabalhos
A experiência com a obra sobre a vida de Cairbar Schutel me levou
a propor ao Eduardo outro desafio: registrar em livro a vida de uma
figura que me era muito cara: Pedro de Camargo, mais conhecido por
Vinicius. Eduardo aceitou. Juntos, demos início a uma
série de viagens, entrevistas, localização de
documentos, contatos com familiares e tudo o mais que uma atividade
dessas exige.
Alguns percalços no caminho levaram ao Eduardo um certo
desânimo, especialmente porque alguns parentes sonegaram
informações e julgaram-nos sem a devida competência
para o trabalho. De forma que as pesquisas foram paralisadas até
que um dia, alguns anos mais tarde, propus ao Eduardo reunir tudo o que
já havíamos levantado a respeito de Vinicius para
verificar a possibilidade de concluir a biografia. Entregou-me ele o
material em seu poder e deu-me inteira liberdade para fazer o uso que
desejasse, uma vez que ele não teria tempo para prosseguir em
vista de outros compromissos assumidos. Conclui o trabalho e assim
surgiu mais um livro em co-autoria: “Vinicius – educador de almas”,
lançado pelo selo EME/Eldorado.
Em maio de 1987, Eduardo fez-me uma proposta inusitada: convidou-me
para ser maçom. Inusitada e surpreendente. Nunca pensara em me
tornar maçom e sequer sabia que ele havia ingressado na Ordem.
Eduardo insistiu, falou-me por alto do assunto, instigou minha
curiosidade e saiu do meu escritório com o meu sim. Deixou-me um
longo questionário de quatro páginas para ser preenchido
e veio buscar pouco depois. Em seguida, veio ter comigo um senhor de
nome Aluisio José de Freitas, proprietário da Sigbol, uma
escola de corte e costura localizada na Vila Mariana. Pertencia ao
quadro da Loja Maçônica Amphora Lucis e queria fazer uma
entrevista comigo em continuidade ao questionário que o Eduardo
havia entregado na Loja.
Confessou ter desejado conhecer-me em razões de algumas
coincidências matemáticas que ele encontrou nas
informações do questionário. De fato, eram no
mínimo intrigantes as coincidências. Aluisio havia nascido
no mesmo dia que eu, alguns anos antes. Sua esposa havia nascido no
mesmo dia que minha esposa. Um de seus filhos nascera no mesmo dia do
meu filho mais velho. E outras coincidências semelhantes havia.
Em pouco tempo, pouquíssimo tempo para os padrões de
exigências maçônicas, tive o meu processo aprovado e
em dezembro daquele mesmo ano fui iniciado na Ordem
Maçônica. Mais tarde vim a saber que Eduardo e Aluisio
haviam apressado o meu ingresso porque queriam a minha
experiência profissional no quadro de colaboradores da revista “A
Verdade”, da Grande Loja Maçônica de São Paulo.
Aluisio era o diretor geral da revista e Eduardo se integrara no corpo
de colaboradores com intensa atuação. Eles dois,
praticamente, respondiam pela revista.
Foi assim que, mais uma vez, trilhei caminhos ao lado do Eduardo. Foi
uma experiência que durou 14 anos e terminou em dezembro de 2001.
Com o Eduardo e o novo amigo, Aluisio, mais o apoio do
Grão-Mestre daquela potência maçônica,
elaboramos um projeto de desenvolvimento da revista com o objetivo de
torná-la uma das melhores do setor. Eduardo, com sua veia inata
de pesquisador, produzia ótimos estudos. De minha parte,
introduzi modificações técnicas necessárias
e fui assumindo cada vez mais participação na revista.
Aluisio, na condição de diretor, realizava um trabalho
intenso de condução e manutenção das linhas
do veículo.
Alguns anos depois, Aluisio viu-se na contingência de deixar a
direção da revista. Instado pelo então
Grão-Mestre a assumir sua direção, sugeri fosse o
convite feito ao Eduardo, reconhecendo nele maior competência
para o metier. Eduardo aceitou, muito feliz, porém ficou no
cargo apenas alguns meses. Pediu demissão tão-logo se viu
confrontado pelo então diretor de Relações
Internas da Grande Loja, a quem competia responder pela revista perante
a administração, em vista de uma matéria sobre
economia a ser publicada.
O episódio deixou suas marcas. Eduardo entendeu que eu deveria
segui-lo. Divergimos sobre os motivos de sua demissão e sobre o
próprio ato. Eduardo jamais voltou a colaborar com a revista e
aliou-se, desde aquela época, à oposição
política na Grande Loja.
Eduardo era dado a extremos. Passamos horas inúmeras conversando
sobre estes fatos, mas ele entendia que quando tomava uma
decisão, era definitiva.
Um pouco antes desses acontecimentos, ou seja, em 1994, havia eu
concluído um novo livro com material sobre o período de
mais de uma década de participação na equipe do
Correio Fraterno do ABC, quando ele me informou que estava concluindo
um texto histórico sobre os 70 anos da imprensa espírita
no estado de São Paulo. Material pertinente ao livro. Foi assim
que publicamos, em 1994, o nosso terceiro livro de parceria, intitulado
“Sinal de vida na imprensa espírita”.
Os conflitos fazem parte do dia-a-dia humano. A boa ética nos
ensina a conviver com os conflitos para superá-los
através do entendimento. Nem sempre, porém, conseguimos
nos equilibrar entre os extremos que os conflitos oferecem. Na Loja
Maçônica Amphora Lucis, continuamos lado a lado, Eduardo e
eu. Até o final de 2001. Entrei pelas mãos dele e pelas
mesmas mãos saí, quando o conflito
político-institucinal atingiu um clímax
insuperável.
Nosso caminhos, porém, nos permitiram construir tantas e tantas
obras juntos que um afastamento definitivo era humanamente
impossível. Vivêramos intensamente emoções
tão marcantes que jamais poderíamos imaginar, sequer, uma
vida distante.
Aqui é preciso fazer uma digressão.
Eduardo sofrera intensamente com a situação familiar. Em
certa altura da vida, tornou-se o amparo de sua mãe, padecendo
com seus padecimentos e velando por sua constituição
física, moral e espiritual. Os desencontros familiares
marcaram-na profundamente e atingiram o Eduardo. O conhecimento
espírita tornou-se a alavanca moral de sua atuação
no lar, junto ao coração materno. Em grande medida, foi
ele, também, uma presença marcante de um verdadeiro pai
na educação de seu sobrinho, quando sua querida
irmã viveu dias de desencontros. A desencarnação
da mãe atingiu-o de modo muito particular, mas constitui-se no
termo de um sofrimento que muito o angustiava. Ao conduzir seu corpo ao
túmulo, ele se despediu de alguém por cuja felicidade
lutou bravamente, enquanto pôde.
Compartilhei com ele muitos desses momentos. Em contrapartida, ele
vivenciou comigo na posição de amigo incondicional
diversos revezes. Em 1991, em plena madrugada de uma noite de novembro,
fui internado às pressas, com um princípio de infarto.
Eduardo, naquele mesmo dia, estava entrando em um período de
merecidas férias. Ao tomar conhecimento do que me havia
acontecido, correu ao Pronto Socorro onde eu havia sido recolhido e
assumiu a condução das providências, dando um apoio
incalculável à minha família. Providenciou UTI,
ambulância para locomoção, assumiu despesas
financeiras, procedeu ao meu encaminhamento à Beneficência
Portuguesa para os exames de cateterismo e providenciou a
internação no mesmo hospital quando os exames indicaram a
necessidade de intervenção cirúrgica.
Desentendeu-se, inclusive, com a equipe médica encarregada do
meu caso quando esta apresentou a cobrança de um pagamento
“extra-contábil”. Mais tarde, ainda revoltado, me contou o fato.
Todo esse processo, do instante da internação no Pronto
Socorro até a alta hospitalar após a cirurgia demandou
exatos 30 dias. Estas foram as férias do Eduardo.
Como afirmei anteriormente, Eduardo era de extremos.
Em todas as obras a que se ligava, assumia integralmente a
responsabilidade e se lançava ao trabalho. Um grande amigo me
ensinou, um dia, que quem trabalha tem o direito de falar. Eduardo, da
mesma forma que trabalhava intensamente por aquilo em que acreditava,
exigia dos seus companheiros uma doação igual. E total
lealdade. Tinha ele uma visão muito particular de lealdade e
isso o fez sofrer muito. Queria uma lealdade incondicional, igual
à que daria, na justiça e na injustiça. Mas cada
indivíduo tem sua medida e suas noções sobre
lealdade. Algo assim como o bom-senso de Descartes.
Se Eduardo dissesse “estou com você”, podia-se acreditar
cegamente nele. Em tudo era ele intenso e total. Quando realizava uma
pesquisa qualquer, dedicava-se ao máximo e não descansava
jamais, porque com o Eduardo as pesquisas jamais têm fim. O seu
primeiro livro – “A extraordinária vida de Jésus
Gonçalves” – deu frutos pela vida toda. Uma vez que ele puxasse
o primeiro fio da meada, não o largaria em tempo algum. É
possível que se perdesse em algum labirinto, mas então o
fio preso em suas mãos o trazia de volta. Quem quer que
vá aos seus arquivos de milhares de livros e documentos, por
certo encontrará material inédito não apenas sobre
Jésus Gonçalves, mas sobre qualquer assunto de qualquer
de seus livros publicados.
Foi com a mesma dedicação que ele integrou-se no trabalho
junto aos hansenianos e viajou pelo Brasil inteiro por conta das lutas
para mudar o paradigma dessa doença que tantas e tantas vidas
segregou da sociedade. A causa hanseniana era uma entre tantas a que se
filiou, um exemplo claro do modus operandi do Eduardo. Ela gerou o
livro sobre Jésus Gonçalves, pontificou a
assistência material permanente no Sanatório
Pirapitingüi do interior de São Paulo, conduziu aos
desafios políticos da mudança na
legislação, enfim, estendeu-se para além, muito
além dos limites visíveis.
De igual modo e com a mesma energia, Eduardo assumiu outros muitos
compromissos que lhe pareciam justos e honestos. Em 1991, reuniu um
grupo de amigos, eu entre eles, para anunciar que havia recebido a
oferta de doação de uma chácara no Bairro de
Eldorado, na divisa da capital paulista com Diadema. Era uma
chácara muito bonita, com algumas construções em
alvenaria e cerca de 10 mil metros quadrados de área total. Para
fazer a doação, o proprietário exigiu que fosse
feito um trabalho social no local.
Decidimos pela fundação da Sociedade Espírita
Anália Franco, numa homenagem à grande batalhadora da
educação. Eduardo assumiu a presidência, fiquei eu
com a vice e a obrigação de constituir uma editora
para gerar receitas à obra. A sociedade assumiu o terreno,
implantou rapidamente algumas atividades e preparou-se para receber a
doação. Esta, porém, não se concretizou,
então. O proprietário passou a fazer novas
exigências, do que decorreram inúmeros conflitos. A
Sociedade Anália Franco, porém, prosseguiu, ocupando
apenas parte do terreno, tendo em vista a solidificação
de suas atividades espíritas e assistenciais. A editora
projetada para sustentação financeira da obra saiu do
papel e editou vários livros. O primeiro deles um trabalho de
pesquisa do próprio Eduardo, intitulado “Anália Franco, a
grande dama da educação brasileira”.
Alguns anos mais tarde, a chácara foi doada à Grande Loja
Maçônica de São Paulo, cabendo à Sociedade
Anália Franco uma pequena parte do terreno, onde ainda se
encontra.
Turrão e amigo, amoroso e ácido. Eduardo era capaz de
fazer os maiores elogios a você e, da mesma maneira, condenar
face-a-face as atitudes das quais discordasse. Certa ocasião,
viajamos em seu carro esportivo, um Puma que ele mantinha com certo
desleixo, para compromissos no interior do estado de São Paulo.
Araraquara, a primeira parada. Em instituição
espírita local, ele fez uma comovida palestra sobre uma
personalidade do movimento, que estava pesquisando. Quando retomamos a
estrada para prosseguir a viagem, perguntou-me: o que você achou
da palestra. Disse-lhe que ele não precisava imitar o Divaldo
Franco, mas deveria assumir a própria personalidade, pois se
daria melhor. Ficou furioso comigo. Mas entendeu. Na cidade seguinte,
não mais utilizou aquele estilo eloqüente consagrado pelo
orador baiano.
* * *
Quando fui visitar o Eduardo no seu leito hospitalar na companhia do
Maurício Ribeiro, entendi que ele estava indo embora. Dormia
ligeiramente quando chegamos, mas logo abriu os olhos e um leve sorriso
apareceu em seus lábios. Começou a contar sua
experiência de quase-morte, as visões que havia tido, o
mundo novo que se lhe descortinava. O corpo imobilizado impedia-lhe de
demonstrar a intensidade natural ao seu ser, mas era visível
como aquilo lhe gratificava.
Em certo momento, espontaneamente, revelou-nos algo muito
íntimo. Disse Eduardo:
- Sabe, eu aprendi muito nestes dias. Aprendi que a gente guarda muitas
mágoas, elas se acumulam e acabam um dia fazendo um mal imenso.
Olhando-nos fixamente, demonstrando relativa tranqüilidade,
prosseguiu:
- Eu guardei muitas mágoas e não percebi isso. Elas foram
me corroendo por dentro, me conduzindo a atitudes injustas. Eu estou
mudando. Quando eu retomar a vida normal, vou rever minha agenda.
Não vou fazer mais as coisas da maneira como vinha fazendo. Toda
essa pressa, toda essa loucura não vale a pena. As coisas
não podem ser dessa forma.
A vida normal para Eduardo, ali prostrado, era a dos milhares de
dezenas de anotações, o convívio com os amigos e
as pesquisas quase intermináveis. A intensidade é que
mudaria.
Eduardo mudou. Mudou-se. Foi reencontrar-se com as centenas de almas
por quem lutou e a mãezinha saudosa. Os amigos lhe desejam breve
retorno.