1. Introdução
Neste trabalho procuraremos reunir alguns dados importantes
da história do Espiritismo, especialmente os referentes a Allan
Kardec e ao Espiritismo nascente. Nossa fonte básica será
a obra
Allan Kardec, em três volumes, da autoria de Zêus
Wantuil e Francisco Thiesen, dada a público pela Federação
Espírita Brasileira em 1979/80. Qualquer estudioso do Espiritismo
reconhecerá prontamente que ela representa o mais completo e rigoroso
estudo já publicado sobre a vida e a obra de Kardec. Os volumes 2
e 3, da autoria de Thiesen, contém ainda análises e comentários
de grande justeza e profundidade sobre muitos tópicos referentes
à doutrina e ao movimento espíritas.
Os três volumes dessa obra apresentam uma massa de informações
bastante densa. Dispõem de índices antroponímicos,
mas não trazem índices analíticos. Nos dois últimos
volumes, os capítulos são de amplas proporções,
contendo muitas seções. Thiesen optou, certamente com razões
ponderáveis, por não fazer uma apresentação
cronológica dos fatos. Tudo isso dificulta sobremodo a localização
dos assuntos. Por tais motivos, julgamos útil compilar aqui, de forma
mais simples e direta,
alguns dos acontecimentos mais importantes.
Fomos motivados por nossa experiência pessoal, de muitas vezes querermos
citar datas e lugares precisos e não conseguirmos encontrar de pronto
as referências. Também pode ser de alguma utilidade dispor de
um painel sucinto dos fatos, que permita sua visualização global.
Naturalmente, sabemos que o que mais importa não são os
nomes, as datas e os lugares, mas a sua significação histórica,
científica e filosófica. O pesquisador cuidadoso não
poderá dispensar a respeitável obra de Thiesen e Wantuil.
Também deve-se lembrar que a segunda parte das
Obras Póstumas
de Allan Kardec consiste de textos de enorme relevância para a história
do Espiritismo, repletos, como não poderia deixar de ser, de preciosas
considerações doutrinárias. O mesmo vale para os
volumes da
Revue Spirite editados por Kardec.
Há algumas outras fontes sobre o Espiritismo e sua história,
que podem ser consultadas, embora nem de longe se aproximem, em abrangência
e precisão, da que nos legaram Thiesen e Wantuil. Entre elas encontram-se:
· Moreil, André.
La vie et l'Œvre d'Allan Kardec. Paris, Vermet, sem data. (Wantuil
menciona outra edição parisiense, Éditions Sperar,
de 1961; Thiesen se refere a uma tradução para o vernáculo,
de Miguel Maillet, publicada sem data pela Edicel. Ver
Allan Kardec,
vol. I, pp. 79 e 26, respectivamente.)
· Sausse, Henri.
Biographie d'Allan Kardec. 4a ed., Paris, Éditions Jean Meyer,
1927. A Federação Espírita Brasileira faz figurar uma
tradução dessa biografia em sua edição de
O
que é o Espiritismo, sem indicação do tradutor.
{
nota 1}
Para facilidade de referência, adotaremos
as seguintes abreviaturas:
· AK I,
AK II e
AK III respectivamente volumes I, II e III da obra
Allan Kardec.
· OP Obras Póstumas
· RS ou
Revue Revue Spirite
· SPES Société
Parisienne des Études Spirites
· FEB Federação
Espírita Brasileira
Os números que aparecerão diante desses símbolos
referem-se a páginas das obras, salvo indicação em
contrário. Utilizamos a 1a edição de
Allan Kardec
e a 18a edição da tradução febiana de
Obras
Póstumas, traduzida por Guillon Ribeiro (confrontada com o original
francês: Paris, Dervy-Livres, 1978).
2. Hippolyte-Léon Denizard Rivail
1804 - (3/10) - Nascimento de Hippolyte-Léon Denizard Rivail,
o futuro Allan Kardec, em Lyon, a segunda maior cidade francesa depois de
Paris. Seus pais foram Jean-Baptiste Antoine Rivail, homem de leis, e Jeanne
Louise Duhamel, residentes à Rue Sale, 76; essa casa foi demolida
ainda em meados do século XIX. (
AK I 29)
1815 - Rivail segue para o Instituto de Johann Heinrich Pestalozzi
para continuar seus estudos. O Instituto ficava na cidade de Yverdon, Suíça,
e funcionava em regime de internato. Os alunos recebiam ali educação
integral esmerada, segundo inovador método pedagógico do
famoso professor, baseado na convicção de que o amor é
o eterno fundamento da educação. (
AK I caps. 2 a 11
e 15)
1822 - Rivail deixa Yverdon e instala-se em Paris. Não há
certeza plena sobre essa data. Sabe-se que em janeiro de 1823 já
residia à Rue de la Harpe, 117. Confirma-se também que pelo
menos de 1828 a 1831 morou na Rue de Vaugirard, 65. (
AK I caps. 12
e 21)
1824 - Rivail publica o seu primeiro livro didático, o
Cours pratique et théorique d'arithmétique, concebido
segundo o método pestalozziano. Foi publicado em Paris na Imprimerie
de Pillet Ainé, Rue Christine, 5. (
AK I caps. 14 e 16)
1825 - Rivail funda a sua primeira escola, a École de Premier
Degrée. (
AK I cap. 18)
1826 - É fundada a Institution Rivail, instituto técnico,
sito à Rue de Sèvres, 35; funcionou até 1834. Neste
mesmo local existiria depois o Lycée Polymathique, dirigido também
por Rivail, até 1850, quando foi cedido a A. Pilotet. A partir
dessa data o Prof. Rivail não mais exerceria atividades didáticas.
(
AK I cap. 19 e pp. 131, 145 e 146)
1828 - Rivail dá a público o "
Plan proposé
pour l'amélioration de l'éducation publique", sugerindo
diretrizes para a educação pública. (
AK I cap.
21)
1831 - Aparece, da autoria de Rivail, a
Grammaire Française
Classique sur un nouveau plan. (
AK I cap. 22)
1832 - Casa-se com Amélie-Gabrielle Boudet (1795-1883),
que seria sua dedicada companheira e apoio de todos os momentos, até
a sua desencarnação. Conhecida mais tarde entre os espíritas
como "Madame Allan Kardec", Amélie-Gabrielle era professora e colaborou
com o esposo em suas atividades didáticas. Nunca tiveram filhos,
conforme explicitamente se lê na
Revue Spirite de 1862. (
AK
I cap. 20, III 45)
Rivail e sua esposa foram pessoas dignas, de moralidade
inatacável, dedicando-se integralmente ao cultivo dos ideais superiores
da cultura, da educação, do bem. Lutaram a favor das causas
da liberdade de ensino e da educação para meninas. Rivail
ministrou por muitos anos cursos gratuitos para crianças pobres.
Além de mestre, foi sempre amigo dos alunos. (AK I cap. 23
a 29)
Do ponto de vista material, o casal Rivail levou vida
simples, não raro enfrentando dificuldades econômicas. Na
fase espírita, seus parcos recursos seriam empregados na publicação
das obras iniciais e em outras despesas referentes ao Espiritismo. Nos
anos de maiores limitações, Rivail complementou sua receita
com empregos temporários modestos, como o de contador. (AK
I cap. 33)
Há referências seguras de cerca de 21 textos publicados
pelo Prof. Rivail, entre livros didáticos e opúsculos diversos
referentes à educação. (AK I cap. 37)
Rivail possuía sólida erudição, conhecendo
bastante bem as diversas ciências, a filosofia e as artes. Traduziu
obras alemãs e inglesas para o francês, e vice-versa. Foi membro
de diversas academias culturais, possuindo vários diplomas. (AK
I caps. 22, 30, 35)
Contrariamente ao que afirmou Henri Sausse, e alguns mantém até
hoje, Rivail não foi médico (AK I cap. 31). Também
não há evidência de que tenha sido maçon, sendo
mais razoável assumir que não o foi (AK I cap. 32).
3. Das observações iniciais à primeira
edição de O Livro dos Espíritos
1848 - Início dos famosos fenômenos
espíritas que envolveram a família Fox, em Hydesville (EUA).
A 28 de março verificam-se as primeiras manifestações
físicas; três dias após, estabeleceu-se a primeira
comunicação tiptológica. Em poucos anos, fenômenos
semelhantes passaram a chamar a atenção pública não
somente nos Estados Unidos, mas também na Europa. Foi a fase das
chamadas "mesas girantes". (
AK II 49-60; ver também
As
Mesas Girantes e o Espiritismo, de Zêus Wantuil, publicado pela
FEB.)
1854 - Rivail é informado pelo Sr. Fortier, magnetisador
seu conhecido, acerca da ocorrência dos fenômenos das mesas
girantes. Embora estranhando-os, não os julgou impossíveis,
já que poderiam ter alguma causa física ainda não bem
determinada. No entanto, algum tempo depois esse mesmo Sr. Fortier lhe disse
que as mesas também "falavam", isto é, davam sinais de inteligência.
A reação agora foi cética: "Só acreditarei
quando o vir e quando me provarem que uma mesa tem cérebro para
pensar, nervos para sentir e que possa tornar-se sonâmbula." (
OP
265;
AK II 62)
1855 - No
início desse ano, o Sr. Carlotti faz-lhe
longo relato dos singulares fenômenos. Embora Rivail o conhecesse
há 25 anos, mais uma vez expressa reservas, dado o temperamento exaltado
do amigo, tão em oposição ao seu. (
OP 266;
AK
II 124)
1855 - Em
maio, Rivail vai, em companhia de Fortier, à
casa da Sra. Roger, sonâmbula, onde conhece o Sr. Pâtier e a
Sra. Plainemaison. Este lhe fala dos fenômenos, mas com seriedade e
frieza, o que o predispõe, finalmente, a observar os fatos. (
OP
266)
1855 - Assim foi que, ainda em
maio, a convite de Pâtier,
Rivail assiste a algumas experiências na casa da Sra. Plainemaison,
sita à Rue Grange-Batelière, 18. Rivail impressiona-se com
os fenômenos, que se verificavam em condições "que não
deixavam lugar para qualquer dúvida. [...] Havia ali um fato que
necessariamente decorria de uma causa. Eu entrevia naquelas aparentes futilidades
[...] qualquer coisa de sério, como que a revelação
de uma nova lei, que tomei a mim estudar a fundo."(
OP 267;
AK
II 64)
1855 - Numa dessas reuniões, conhece a família
Baudin, então residente à Rue Rochechouart (a partir de 1856
iria para a Rue Lamartine; ver
AK 64). Convidado pelo Sr. Baudin,
passou a freqüentar assiduamente as sessões semanais que se
realizavam em sua casa. Os médiuns eram as filhas do casal, Caroline
e Julie, que no início escreviam com o auxílio de uma estinha.
{nota 2}De numerosas e frívolas que eram, sob a influência
de Rivail as reuniões passaram a reservadas e sérias, dedicadas
à pesquisa racional e metódica do novo domínio. "Compreendi,
antes de tudo, a gravidade da exploração que ia empreender;
percebi, naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro
e tão controvertido do passado e do futuro da humanidade [...]. Era,
em suma, toda uma revolução nas idéias e nas crenças;
fazia-se mister, portanto, andar com a maior circunspeção,
e não levianamente; ser positivista e não idealista, para
não me deixar iludir" (
OP 267-68;
AK II 64). Rivail
submetia aos Espíritos séries de questões visando a
elucidar problemas relativos à filosofia, à psicologia e à
natureza do mundo invisível. Um grupo de intelectuais encarregou-o
de analisar e joeirar cerca de 50 cadernos com comunicações
espirituais diversas. (
AK II 71, 68 e 125).
1856 - Nesse ano passou a freqüentar também as reuniões
espíritas da casa do Sr. Roustan, na Rue Tiquetonne, 14. O médium
era a Srta. Japhet, sonâmbula. As anotações de Rivail,
provenientes em grande parte das comunicações obtidas pelas
Srtas. Baudin, tomaram as proporções de um livro, embora se
saiba que por volta de abril ainda não estava claro para ele que
deveria ser um dia publicado (
OP 276). Depois que isso se tornou evidente,
foi por intermédio da Srta. Japhet que os Espíritos auxiliaram
Rivail a fazer uma revisão completa do texto já elaborado.
Era o
Livro dos Espíritos. (
OP 270, 276 e 277;
AK
II 72)
1856 - A
30 de abril, pela mediunidade da Srta. Japhet,
Rivail tem a primeira notícia de sua missão, em linguagem
bastante alegórica. Outras se seguiram, de cunho mais positivo. O
conjunto dessas comunicações e, principalmente, os comentários
de Rivail indicando sua reação, constitui leitura obrigatória
para todo espírita, por sua beleza e elevada significação.
(
OP 277-87;
AK II 69 e 72)
1857 - No
início desse ano o texto manuscrito de
O Livro dos Espíritos está concluído; o editor,
E. Dentu, envia-o à Imprimerie de Beau, em Saint-Germain-en-Laye,
que dista 23 km de Paris, a oeste (
AK II 73 e 75). As despesas correm
inteiramente por conta de Rivail (
AK II 257). O casal Rivail residia
então à Rue des Martyrs, 8, no segundo andar, nos fundos do
pátio, onde estava pelo menos desde março de 1856 (
OP
273).
1857 - A
18 de abril, vem à luz a primeira edição
de
O Livro dos Espíritos (
Le livre des Esprits). Contendo
os princípios da doutrina espírita sobre a natureza dos Espíritos,
suas manifestações e suas relações com os homens;
as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da humanidade;
escrito sob o ditado e publicado por ordem de Espíritos Superiores
por Allan Kardec. Paris, E. Dentu, Libraire, Palais Royal, Galerie d'Orléans,
13.{
nota 3}
Essa primeira edição contém 501 questões,
distribuídas em 3 partes (176 pp.). Afora a tábua dos capítulos,
há um útil índice analítico ("Table alphabétique").
Não há conclusões; apenas um Epílogo, de menos
de uma página. As notas de Rivail, em número de 17, vêm
todas no final, ocupando 12 páginas. Ao longo de toda a primeira
parte ("Livre premier. Doctrine spirite.") adota-se uma forma de exposição
dupla: na coluna da esquerda, perguntas e respostas; na da direita, o
texto corrido equivalente. É nesta obra que Rivail adota o pseudônimo
de Allan Kardec nome que teria tido em antiga encarnação
entre os druidas, sacerdotes do povo celta, que ocupou a Gália,
a Grã-Bretanha e a Irlanda (
AK II 74-80). No Epílogo,
anuncia-se para breve a publicação de um
suplemento,
contendo novos ensinos. No entanto, Kardec acaba desistindo da idéia,
elaborando, em seu lugar, uma segunda edição "inteiramente
refundida e consideravelmente aumentada", que viria a público em
março de 1860 (ver seção 6 deste nosso trabalho). Em
1957 Canuto Abreu publicou edição bilíngüe da
primeira edição de
O Livro dos Espíritos, sob
o título
O Primeiro Livro dos Espíritos (São
Paulo, Companhia Editora Ismael).
Notas
1. A primeira edição
dessa biografia data de 1896 e aparecia traduzida na coletânea O
Principiante Espírita, que a FEB publicava no passado; a quarta
edição foi prefaciada por Léon Denis (ver Allan
Kardec, vol. I, pp. 200, 198 e 29; vol. II, p. 15). Há referências
a uma "nouvelle édition", de 1910, com prefácio de Gabriel
Delanne (ver ibid., vol III, p. 117 e vol II, p. 15).
2. Em Obras Póstumas,
p. 271, há uma comunicação atribuída à
mediunidade da Senhora ("Mme" ) Baudin; teria sido uma falha tipográfica,
ou ela também era médium? Embora na página 267 Kardec
diga que os médiuns eram "as duas senhoritas Baudin", nas comunicações
mediúnicas transcritas nunca especifica qual serviu de médium,
escrevendo simplesmente "Mlle Baudin". Na Revue Spirite de 1858
(ver AK II 64-65) Kardec refere-se explicitamente a uma série
de comuncações transmitidas por Caroline, notando, incidentalmente,
que "mais tarde o médium se serviu da psicografia direta". Em OP
271 Kardec relata que em fins de 1857 ambas se casaram e a família
se dispersou, ficando implícito que não pôde mais contar
com sua mediunidade. Em seus controversos comentários à edição
bilíngüe da primeira edição de O Livro dos
Espíritos (p. viii), Canuto Abreu avança que Caroline e
a irmã tinham, em agosto de 1855, 16 e 14 anos, respectivamente, e
que a mais velha era o médium principal; não pudemos confirmar
essas informações em fontes independentes.
3. Esses dizeres que se seguem
ao título são os que constam da página de rosto da obra
(ver fac-símile à p. 75 de AK II). Observações
semelhantem valem para os demais livros de Kardec mencionados nas seções
seguintes.
Continua no Próximo Boletim